O mundo não para de mudar. Comida não é
igual à do passado. Ninguém bebe bebida com sabor de antigamente. Objeto, com
qualquer pancadinha, se quebra. E os costumes?... Nossa Senhora e Seu filho tomem
de conta de nós! - Araujinho, próximo dos sessenta e sete anos, mostrava-se
inconformado com os erros da modernidade.
Para ele, todo mal do mundo só acontece
devido à perversão dos costumes atuais, bem diferente do tempo de jovem. Assim,
Godofredo Araruna de Araújo, o Araujinho, afirmava suas ideias a amigos e amigas.
Destacava-se como verdadeiro paladino dos bons costumes, das virtudes e dos
valores. Até se aposentar, trabalhou como professor de escola municipal de Juazeiro do Norte.
Antes de assumir o magistério municipal,
Araujinho possuiu escola de primeiras letras, onde frequentaram somente menina.
Seu saber lhe fazia cidadão instruído e recebedor de elogios. Os conhecidos seus
o admiravam por seu apego aos ensinamentos da Igreja Católica Apostólica
Romana.
Apesar de ter lido poucos documentos
eclesiásticos, de conhecer pouco a História da Igreja, apresentava-se fiel à
tradição católica, aos atos litúrgicos e às rezas. Assistia à missa
diariamente, se confessava, comungava e rezava o terço todos os dias. Ainda,
possuía o hábito de rezar novena de santos pelas casas. Tudo isso para quê? Assim
lhe especulavam. Já as suas amigas muito o admiravam diante do seu verdadeiro
esforço de ir para o céu.
- O que fiz desde a juventude, explicava
Araujinho com o hábito de bater o guarda-chuva no chão, continuo até hoje, sem me
cansar. É para minha salvação e dessa multidão de pecador, seguindo para o fogo
eterno.
O tal fogo eterno, para ele, era o inferno.
Araujinho sabia, ao seu modo, descrever o local do sofrimento eterno.
Identificava-o como a morada eterna dos que abandonavam Deus. Segundo o rapaz
velho, o inferno começou a se encher mais no início do século XX.
- Sabem por quê? - indagava Araujinho de
dedo indicador em riste e de rosto sério. - Pelos pecados espalhados pelo
comunismo no mundo.
Devido a essa advertência, Maria
Margarida Evangelista dos Anjos, solteirona, conhecida por Dos Anjos, forçou a ser
amiga íntima de Araujinho. Até que conseguiu adentrar à residência do professor.
Na tarde da primeira sexta-feira de
setembro, após a celebração da missa em honra ao Sagrado Coração de Jesus, Araujinho
abriu as portas da sua casa para receber Dos Anjos. Nesse dia especial, comemorava-se
a passagem do aniversário de sessenta e sete anos do Godofredo Araruna de
Araújo.
A casa de Araujinho se situava em um
agradável e calmo sítio. A casa no centro era ladeada por quatro mangueiras
frondosas, dois pés de seriguela, quatro de mamão, dois de abacate, dois de
limão. Na frente da casa, o juazeiro de sombra farta. Havia ainda a horta de
onde Rita, sua cozinheira e “dona da casa”, retirava alface, tomate, coentro,
cebolinha, pimentão e pimentinha verde, para as refeições dos dois.
Habitavam na casa o gato Neguim e o
cachorro Meninim. Dentro de quatro gaiolas, quase se encostando ao telhado da
sala de visitas, para ficarem longe das garras de Neguim, as aves cantadoras:
canário, golinha, galo de campina e sabiá. Por falar nessa sala, após o
alpendre, viam-se o quadro com os pais dele já falecidos, sete quadros de santos
e as estátuas do Coração de Jesus e do Coração de Maria, dentro do lindo oratório
barroco em cima de uma mesa enfeitada.
Amiudaram-se as visitas de Dos Anjos ao
amigo Araujinho. A solteirona passou a ser a visitante oficial da casa. Assim, apesar
de vinte e cinco anos de amizade e os de frequentar a casa, a solteirona nunca
desejou morar com o amigo, apesar de Araujinho convidá-la. Mas próximo
de morrer, sem ainda dar sinais de caduquice, Araujinho revelou a Dos Anjos seu
segredo.
No dia em que Araujinho festejava os oitenta
anos, decidiu narrar o seu segredo a Dos Anjos. Mostrava-se animado e saudável.
Beberam o café de Rita, com bolo de puba e sequilho, entre outras guloseimas. Rita, cozinheira de primeira, amansou o sabor de Dos Anjos, a grande apreciadora de sua culinária. Aliás,
na casa de Araujinho comida saborosa nunca faltava sobre a mesa.
- Eu vi direitinho o caixão no céu, Anjo.
Bem ali, ali - começou a detalhar a cena, de cabeça para fora da janela da
cozinha, apontando dedo indicador da mão direita para o lado do oeste. E
continuou: - Foi nesta mesma hora: de quatro para cinco da tarde. O caixão estava
espalhado no Céu, deitado e aberto.
Sem sair da janela, Araujinho convidou,
com insistência, Dos Anjos a fim de lhe mostrar o local físico onde ele avistou a
visão fenomenal. Como referência precisa, situou a copa da mangueira do meio.
Segundo ele, ali ocorrera a visão fantástica no tempo de sua mocidade, ainda
quando ele atravessava seus vinte e três anos de vida.
Após Araujinho certificar o local onde,
no céu, aparecera o caixão, voltaram a sentar-se ainda na mesa da cozinha. No
instante, Godofredo Augusto de Araújo mudou de rosto. Dos Anjos de repente se
espantou, porque nunca vira Araujinho bem pálido.
Para Araujinho, o misterioso fato
aconteceu numa primeira sexta-feira de agosto. Nesse dia, ele assistiu à missa
em honra ao Sagrado Coração de Jesus e comungou, para cumprir a décima-segunda
promessa feita pelo Sagrado Coração de Jesus a quem comungue em doze primeiras
sextas-feiras de cada mês, para a salvação da própria alma. Em seguida, retornou
para sua casa onde morava com os pais e Rita, a empregada.
Ao entrar em casa, seus pais descansavam
no quarto de dormir, ao lado do seu. Rita, ainda moça, tinha ido ao sítio da
família dela, próximo dali. A visão foi de repente. Godofredo havia aberto a
janela da cozinha para espiar o céu, logo após haver posto o café da garrafa
térmica na xícara. Que surpresa! Avistou ele o caixão prateado, a brilhar no
céu sem nuvens, começando a se avermelhar, devido ao final da tarde.
Dos Anjos percebeu seu amigo lhe mostrar
os braços arrepiados. Mas Araujinho continuou a reviver a cena. Afirmou-lhe trêmulo: “Com meus dois
olhos, que Deus me deu...”. E apontava para o céu. “Naquele instante, cheguei a
ver sair, de dentro do caixão, a faixa preta. Se estendia pouco a pouco pelo
céu. Cheguei a lacrimejar por causa da claridade que fazia. Parado eu estava,
parado fiquei. Não tive ânimo nem para me bulir. Só vi quando começou a ser
escrita, na faixa preta, já toda estendida no céu, as letras prateadas. Prestei
atenção em cada palavra que ia sendo escrita. Não vi quem escrevia as palavras”.
Quando a faixa terminou de ser escrita, Araujinho leu e releu por três vezes a
frase. A frase que nunca mais saiu da sua cabeça: AUMENTE O PANO QUE EU
AUMENTO O PÃO.
- Escute, Anjo - alertou Araujinho à
amiga, enquanto colocava a xícara vazia sobre o pires. - Mulheres de hoje
chegam a aumentar o pano? Poucas, somente as filhas de Maria. Mas as de hoje, filhas
de Eva, andam a mostrar pernas, peitos e até seus fundos.
Interessante que somente, após faltar
duas décadas para a chegada do ano dois mil, Araujinho decifrou o tal enigma
divino. Deu-se assim: certo dia, no mês de agosto de 1976, quando assistia à
televisão, a sós em casa, deparou-se com o assassinato de uma mulher pelo marido, enciumado por ela andar com roupa a mostrar pernas e seios.
Até antes de morrer, e ainda lúcida, Maria
Margarida Evangelista dos Anjos quando narrava a alguém a história do seu amigo
Araujinho, ao final lhe esclarecia que não havia entendido a frase do Godofredo:
AUMENTE O PANO QUE EU AUMENTO O PÃO. Já Rita morreu acreditando.
JN. Dantas de Sousa