Coragem pro que der e vier (Dantas de Sousa) - conto

Falar de José Valente da Silva, de sua coragem, do seu modo de viver, não é fácil para quem deseja imitá-lo. Ele foi um sujeito que se acostumou a dizer: Tenho coragem pro que der e vier

Os amigos mangavam desse seu Tenho coragem pro que der e vier. Familiares, porém, explicavam ao povo que aquilo era somente cacoete dele, desde adolescente. Mas para quem não o conheceu proponho apresentar-lhe alguns fatos da sua vida, já que ele havia se tornado um popularesco cidadão dum município do Cariri cearense.

Numa vez em que dois homens correram para acudir a moça a gritar, ao se afogar no açude, eles se depararam com Zé Valente à beira d’água. E, ao ser convocado para salvá-la, Zé Valente se desculpou: tinha ido defecar no matagal. Depois desse fato, Zé Valente, no bar de Seu Joaquim, após beber doses de cachaça, dramatizou para amigos aquela sua caganeira. E terminou a fala com o dito habitual Tenho coragem pro que der e vier.

Como na vida ninguém conhece alguém com profundidade, Zé Valente apareceu pela cidade com a notícia descabida: resolvera se casar. Logo a história do casamento inesperado correu de boca em boca, numa impressionante rapidez. O boato se esticou pela cidade: quem era a escolhida de Zé Valente? Onde ela morava? Era moça, mulher separada, divorciada, viúva, idosa, rica? Recrudesceu-se a fofoca até ao ponto de um comerciante abastado da cidade escolher dois adolescentes para rastrearem, em segredo, os passos de Zé Valente. 

Interessante foi que nunca viram Zé Valente namorar, nem noivar, como a tradição social o exigia. Muitos se atreveram a lhe indagar a data do casamento. Zé Valente sempre repetia a frase:Tenho coragem pro que der e vier. E, assim, se tornou dificultoso para entender qual era mesmo o seu tipo de coragem. Alguns passaram a desconfiar do que Zé Valente afirmava. Era mais de boca do que de ação.

Quando Maria das Dores engravidou, alguns da cidade, sobretudo comerciantes do centro e do Mercado Central, alimentaram fantasias, tal como se Zé Valente seduzira Maria das Dores. Ao passar o tempo, as pilhérias viraram cinza. Primeiro pela própria família de Maria das Dores que tratou de explicar aos boateiros que Zé Valente jamais bulira com Maria das Dores. No entanto os debochadores de plantão semearam sementes novas na cidade. Diziam que o rapaz não era corajoso, porém molenga e mentiroso. Assim, terminou Maria das Dores a parir, sem saberem quem era o pai da criança. Mesmo assim, ressurgiu a pólvora acesa em surdina: o verdadeiro sedutor de Maria das Dores e o pai da criança era mesmo Zé Valente. Lá se atreveu o corajoso a negar, com seu bordão no final: Tenho coragem pro que der e vier.    

Numa noite de sábado, de novena do padroeiro do Município, surgiu um fato para Zé Valente mostrar sua coragem. No pátio ao lado da Matriz (onde se instalou o parque de diversão: apresentação, barracas de comida, de mercadorias), inesperadamente o locutor do leilão parou de cantar as pedras do bingo, para anunciar que alguém, com letra parecida de mulher, arrematou o peru assado para o rapaz que Tem coragem pro que der e vier. O tal presente espantou os frequentadores. Concordavam ser de modo claro Zé Valente. O locutor ainda afirmou ter recebido o bilhete da mão de um garoto. No outro dia, ainda o comentário era um só. E Zé Valente, cheio de pose, repetia: Tenho coragem pro que der e vier.

Um daqueles jovens escolhidos para rastrear Zé Valente, na afoiteza dos dezesseis para dezessete anos, impressionou-se pelo personagem do bordão e pela tamanha importância que o povo lhe dava. E como lhe deram autoridade para descobrir a futura esposa de Zé Valente, chegou a perder aulas e festas só para investigá-lo. Já nem obedecia aos conselhos dos pais, para que ele parasse com a teimosia.

Numa madrugada chuvosa de começo de abril, o adolescente se encontrava na esquina da farmácia de Seu Vicente Gomes, debaixo da marquise, para se resguardar da chuva grossa. Sem esperar, avistou Zé Valente saindo da casa de Seu Antônio-do- chevrolete. Mas, como o caminhão não se achava estacionado diante da casa, aumentou a desconfiança do jovem de que algo estranho acontecia. O adolescente entrou em dúvida tamanha: será que Zé Valente teria, de verdade, coragem de trair Seu Antônio-do-chevrolete?

Não teve o jovem a coragem de contar a alguma pessoa da cidade o que presenciara. Botou na cabeça de descobrir sozinho o enigma. Amiudou a solitária investigação. Quanto mais os pais lhe pediam para ele parar aquilo mais crescia nele a vontade de especular Zé Valente.

Como ele se espantou na tarde se indo, ao assistir, no meio do matagal, Zé Valente transando com a formosa burra de Antonico-do-padre. Quão foi espantoso para o jovem: os olhos de Zé Valente arregalados, arfando e gritando como louco, a tentar chegar ao orgasmo. Equilibrava-se Zé Valente no toco de árvore. Por fim, caiu no barro duro, debaixo da mangueira, enquanto a burra saiu pulando dum lado a outro, como se parecesse feliz. Resolveu o adolescente contar as duas últimas presepadas de Zé Valente para o vigário da igreja de São José, padre Amaro. Não teve coragem, sentiu-se envergonhado, espantado. Sofreu. Padre Amaro iria acreditar em sua história? Acabou desistindo de ir ao vigário.

Enquanto o povo da cidade ouvia Zé Valente repetir a sua mesma frase, porém ninguém não conseguia descobrir a razão daquela sua mania de esnobar coragem. Mas a insistência do jovem lhe incentivava a ir mais adiante. E o destino o fez se aproximar de Maria das Dores, que era sua tia, irmã de seu pai. Por incrível que pareça, terminaram os dois fazendo sexo na beira do açude. Na hora do orgasmo, ouviu a tia falar bem claro, ao seu ouvido: “Ai se fosse o meu Zé Valente”.

Após terminarem de se abraçar, o jovem lhe perguntou por que ela falara o nome de Zé Valente, ao seu ouvido. Maria das Dores, de modo desconfiado, confessou-lhe ter sido Francisquinho seu primeiro caso sexual. E mais: "Foi ele quem engravidou ela". E completou-lhe a confissão: “Francisco tem coragem pro que der e vier”.

Ainda se lembra da moça que Zé Valente se recusara a salvá-la de se afogar no açude? Pois ele, naquele instante, havia terminado de fazer sexo com ela. Aguardava, na beira do açude, ela se banhar. Não esperava dela gritar por socorro, a brincar de se afogar. Por isso, o rapaz inventou aos socorristas de ir defecar no matagal. A tal moça era Maria das Dores, amante de Zé Valente. 

                                                      ***

José Batista Rolim, sobrinho de Maria das Dores, aquele investigador das aventuras audaciosas de Zé Valente, já casado, morando e trabalhando em São Paulo, num certo dia recebeu a visita de um conterrâneo em seu apartamento. Ouviu dele a estranha morte de Zé Valente. Segundo o conterrâneo, a morte também chegou a ele com coragem. Aconteceu assim: Zé Valente conheceu uma senhora casada, que morava num sítio pouco distante da cidade.

Zé Valente apaixonou-se por ela. Ia por lá às escondidas. Após receber certa manhã, através de amiga íntima dela, o bilhete urgente, dirigiu-se todo satisfeito em começo de noite, à residência dela.

Entretanto, durante a noite, ao voltar da casa da amante a cavalo, em madrugada de lua nova sem estrelas, além de esquentado de álcool, encontrou-se com a onça, em local coberto de árvores. Teve certeza de ser a fera devido ao seu rugido. Daquela vez, não deu tempo de Zé Valente mostrar ter coragem para o que der e vier. Só o seu cavalo conseguiu escapar da fera.

JN. Dantas de Sousa

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