Após ler no jornal de Fortaleza a notícia do falso mendigo que fora preso, o advogado José Ferreira Cidrão, conhecido em Juazeiro do Norte por doutor Dudé, botou o jornal no chão e se acomodou melhor na rede. Encontrava-se ele passando final de semana em sua chácara na Lagoa Seca, já no limite de Juazeiro do Norte-Barbalha, com a esposa, a filha caçula solteira e Das Dores, antiga empregada. Mas, naquele momento, a esposa e a filha foram visitar uma parenta, acamada há anos no povoado Brejo Seco.
A notícia trouxe a doutor Dudé instante de reflexão. Mas ele desviou seu pensamento para o cheiro da comida de Das Dores. Ela preparava o almoço. Sem se levantar da rede, o advogado resolveu pedir café à Das Dores. A empregada sorriu do costume: café do patrão se passava na hora e com adoçante.
Doutor Dudé e família amavam Das Dores. Ela não se
casara por preferir viver com os patrões. Já morava com eles há vinte e cinco
anos, desde que viera de Aiuaba, município da região sul do Ceará, aos
dezessete anos, sob licença dos pais. Tomava de conta da casa, possuía faro e destreza
para despedir qualquer pessoa que viesse incomodar a família, sobretudo falsos
pedintes. De fala mansa, a empregada sabia bem os gostos de cada um da casa.
Após beber a xícara de café, doutor Dudé agradeceu à bondosa Das Dores. A sós, no silêncio da chácara, voltou a se acomodar na espaçosa rede. Imaginou como uma pessoa se usava do próximo para enrolá-lo. Crescia, no Brasil, esse tipo de gente. Políticos, por exemplo, ensinavam aos pobres sobreviverem de esmolas do Estado. Além do mais, haviam pessoas que se associavam a bandidos e malfeitores para angariarem a fama de ricos.
Antes de retornar para a leitura, doutor Dudé olhou
em volta. Sentia-se bem naquele seu lugar. Aliviava-se da agitação da cidade. Como
aquele silêncio o alegrava e entusiasmava-o no dia a dia de sua profissão. Nada de
som alto naquela manhã de começo de abril. Clima agradável, vegetação verde,
já que, naquele ano, chovia melhor do que nos dois anos anteriores.
Entretanto, para quebrar a saudável e alegre manhã,
o advogado ouviu, do lado direito do alpendre, a voz da vizinha a falar para
alguém:
- Você é igual a muitos. Por que não vai trabalhar.
Só quer viver de água fresca.
Doutor Dudé deixou-se ouvir a voz de homem, apresentando à mulher o estado em que se encontrava. Segundo ele, passava por grande necessidade. Trabalhava para a Prefeitura de Juazeiro do Norte. Salário atrasado, vale-alimentação cortado de todos. Ninguém não mais possuía crédito em nada. Estavam à míngua. A sua mulher, os seus cinco filhos precisavam de tudo. E o pior, a filha caçula, naquele momento, já poderia ter morrido. Pegara enfraquecimento, e ele não tinha mais dinheiro nem para comprar um comprimido. Já havia ido a postos de saúde: foi mal atendido.
- Se eu fosse agradar a quem bate na minha porta, estava pior que você.
A mulher ainda falou que era separada, e cinco
filhos para tomar de conta. E doutor Dudé, em sua rede, absorvia-se com os dois revoltados. Veio-lhe a intuição: logo o pedinte iria bater palmas no seu portão.
Ao começar a retirar os punhos da rede, para esconder-se dentro de casa, avisou a Das Dores mandá-lo embora. No entanto, para seu espanto, deparou-se com o sujeito dentro da chácara, a
caminhar molemente em sua direção.
- Senhor, eu vim aqui porque estou sem nada.
O desconhecido aproximou-se do alpendre com chapéu
entre os dedos, alpercatas gastas, sacola de pano surrado nos ombros. Antes de
pedir licença, sentou-se na amurada do alpendre. O advogado aprumou-se na rede.
Chamou Das Dores e lhe pediu pão com café para o mendigo. O homem derreteu-se
em agradecimentos.
Mas doutor Dudé mudou seu plano porque sentira no desconhecido bafo de bebida alcoólica. Chamou Das Dores e ordenou-lhe que suspendesse o pão e o café. Ofereceu ao gari um almoço: caldo de feijão verde temperado com jerimum, quiabo e maxixe, além de carne e arroz. Ainda, lhe daria uma cachacinha. Na hora, o rosto do pedinte transfigurou-se. Acendeu sorriso. De pronto, aceitou.
Sem demora, Das Dores de cara amuada, trouxe no prato fundo a comida e a garrafa de aguardente amarela. Assim, a conversa do mendigo ficou sem cerimônia.
Apresentou-se como Francisco Pereira da Luz. Era
conhecido como Zé de Caririaçu. Trabalhava de gari e contratado pela Prefeitura
de Juazeiro do Norte. Andava com salário atrasado, sem vale-transporte, sem
vale-alimentação. Ainda, revelou ao advogado ações irresponsáveis do
gestor juazeirense. Desabafou sobre política malfeita, politicagem solta, gente ganhando sem trabalhar. Além da família do prefeito dentro da prefeitura, e vereadores comprados pelo prefeito. Estendeu-se um pouco mais, engolindo dose de cachaça, com resto de comida do prato.
Para o advogado, a conversa do gari o satisfez. Doutor Dudé já havia pensado em se candidatar a prefeito de Juazeiro do Norte. Mas, analisando bem, não confiava nos eleitores, nem nos candidatos a vereador, nem nos chefes políicos do município. Afinal, Juazeiro do Norte não era diferente dos demais municípios. Havia o traçado na apuração dos votos...
- Senhor, minha filha, essas horas, deve ter morrido. Não sei como enterrar ela.
O gari abaixou os olhos e, logo, surgiu a lágrima.
Devagar, puxou do bolso o cigarro forte, pediu licença para acendê-lo. Enquanto
acendia, não percebeu Das Dores, por detrás da porta de entrada, acenando para
o patrão mandá-lo embora. Mas o advogado preferiu ouvir o gari e vê-lo a comer e
a beber.
-
Senhor, Juazeiro é traiçoeiro. Vim pra cá e perdi tudo.
O gari lastimou-se de que o fiado da bodega fez-lhe
perder a casinha. O dono da venda comeu o seu único bem. A mulher caiu no caderno do bodegueiro.
Cortando-lhe conversa, o advogado perguntou-lhe de
que a filha do gari adoecera. Mas a pergunta mostrou uma ponta de
desconfiança, já que o gari gaguejou e buscou desvio nas palavras. Mesmo
assim, doutor Dudé insistiu na pergunta. Até avisou ao gari ser advogado e poderia
ajudá-lo.
- A essa hora, senhor, já tá morta. Careço tirar dinheiro pro enterro dela.
Ao se levantar da rede, doutor Dudé pediu para o
gari terminar de beber e comer. Iria levá-lo até a sua casa, a fim de ajudá-lo.
Mas qual foi a surpresa do doutor antes de partirem. Embriagado, o gari se derramou no choro. Doutor Dudé se atribulou, até se esquivou dos acenos de Das Dores por detrás da porta de entrada. No entanto o gari, sem mais chorar, confessou a doutor Dudé:
- Doutor, me perdoe. A morte dela é só pro povo sentir minha agonia.
O advogado quis se inflar de raiva. Lembrou-se logo do pedinte do jornal. No chão, viu a foto do infeliz. Abrandou-se. E raciocinou rápido. Penetrou em sua casa. Após pequeno instante, retornou e pôs, na mão do pedinte, quatro notas de cem reais.
Derreteu-se o pedinte no choro.
Prometeu-lhe, de mãos postas, pela alma do finado pai e da finada mãe, que ele
iria pra casa, iria fazer uma feira naquele domingo. Nunca mais se usaria do triste e errado artifício. Iria rezar muito pro doutor.
Sem ter coragem de se despedir, vendo-se envergonhado, Zé de Caririaçu deixou a casa do advogado sem ao menos olhar para trás. Segurando na pilastra do alpendre, doutor Dudé assistiu ao Francisco da Luz trancar a cancela de madeira e se sumir na estrada. Em seguida, já na cozinha de casa, implorou a Das Dores não falar o ocorrido à sua mulher e à filha.
JN. Dantas de Sousa