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Vida mal traçada (Dantas de Sousa) - conto

Se não se consegue saída para um grave problema, com certeza existe alguém para ensinar como se sair dele. Com esse pensamento a martelar dentro de si, ele se dirigia a pé, para a casa de número 16, da Rua das Flores, nas imediações do bairro Romeirão, em Juazeiro do Norte. Não avisou nem mesmo à esposa. Precisava descosturar da sua vida o remendo mal feito. Caminhava nervoso, de chapéu e óculos escuros, tentando se disfarçar de conhecidos. Após ele se atrapalhar em duas ruas do bairro, bateu à porta do endereço escrito no guardanapo de papel. E logo aberta a porta pela mocinha de rosto magro e olhos fundos, ele lhe disse meio sem jeito: “Bom dia. Eu queria uma consulta”.

- Entre pra dentro, ordenou-lhe a mocinha.

Na sala da frente, ele se sentou no sofá verde, desgastado pelo tempo. Tirou o chapéu, não os óculos. À sua frente, a cliente loira, de óculos escuros, roía o esmalte vermelho-escuro da unha. Ele tratou de folhear a revista de variedades. Mas seu pensamento sobrevoava sobre páginas, angustiado pela notícia da gravidez da amante. Lembrava-se da chegada da filha dela a lhe entregar o bilhete em seu armarinho, no Mercado Central. 

Remoeu-lhe o pensamento: besteira grande fizera ao ter se enrolado com a desajuizda. Há ano e meio, ela pintou a primeira chantagem. Madalena o desafiara. Havia lhe pedido mil reais para quitar a casa da Caixa. Ameaçou-lhe até infernizar a esposa dele. Sob pressão, teve de abrir o bolso. Devido a essas tristes ocorrências, ele se decidiu consultar a cartomante, para saber o remédio que lhe curaria a infame ferida.

- Manda entrar o da vez, Iara.

Ele se levantou do sofá ao ouvir a voz fanhosa, saída pela brecha da porta à sua direita. Com impaciência, observou Iara penetrar a mulher loira no quarto semiescuro. Voltou, então, a se sentar no sofá, para se distrair na revista. No entanto Iara, após trancar a porta do quarto da mãe, anunciou a ele: “Pra mãe botar carta, é vinte real”. E num instante a moça se sumiu pela cortina vermelha. Na sala, o silêncio se fez. Ele ainda folheou apressado algumas páginas da revista, porém jogou-a sobre a mesinha ao lado do sofá. De cabeça baixa, com olhos a vagar sobre o tapete empoeirado, procurava entender como a cartomante iria lhe mostrar a desamarração do nó. Mas Iara lhe fez sair da divagação: “Senhor, tome o café. Passei agora”.

Diante dele, após lhe entregar a xícara, Iara abriu o pedaço de caderno e retirou a caneta. Ele não admitiu seu nome ser escrito no caderno. Bebeu metade da xícara, entregando-a para a moça. Acendeu o cigarro. Ao vê-lo de cigarro aceso, Iara pôs o cinzeiro junto dele. E sentou-se na almofada, para investigá-lo:

- Já vi gente como o senhor. O senhor trabalha com gado?

- Você acha?...

Iara sorriu-lhe encabulada. Ao vê-lo sem querer conversa, pediu-lhe licença a fim de olhar a panela no fogão. Enquanto a moça se demorava dentro da casa, o ponteiro fino do relógio vermelho, de mostrador branco, corria na estante mais que os outros dois. Na prateleira abaixo, a estatueta da cigana e do preto-velho estavam iluminadas pela vela branca sete dias. Deixou-se ele ser levado pela chama da vela.

Diante dele, Madalena com raiva. Os olhos castanhos dela bem abertos, e as pupilas sem se mexerem. Diferente daqueles olhos submissos, na levantada de rosto quando ele almoçava na barraca dela durante romaria de setembro. Lembrou-se ele do seu inusitado gracejo quando Madalena lhe servia o almoço: “Seus olhos combinam com seu tempero”.

Enquanto durou a festa da padroeira Nossa Senhora das Dores, ele deixava a barraca de bijuterias entregue ao filho de doze anos e, culpando a fome, corria para a barraca de Madalena. Desfrutou-lhe o tempero da comida e os olhos dela. Deu no que deu: alimentou-se de abraços e beijos. A paixão dentro dele fervera grau tão alto que ele terminou batendo à porta da casa dela, por trás do Santuário de São Francisco das Chagas. Dali em diante, em idas noturnas à casa da amante, ele implantou desculpas no cérebro da esposa.

- Manda entrar o da vez, Iara.

Outra vez ele se assustou com a voz fanhosa da cartomante. De tão absorvido naquela aura lúgubre do local, não chegou a perceber a saída da mulher loira. Atordoado, levantou-se do sofá para obedecer à mocinha, convidando-o a penetrar no quarto da cartomante. E ele, encabulado, entrou no repugnante local, tomado por fumaça de cheiro esquisito.

Absorveu-se de magia: nos quatro cantos da sala, velas de cores diversas, estátuas, garrafas e copos com líquido. Na parede diante dele, o preto-velho, de chapéu e barba branca, fumando cachimbo, encarava-o sério. Na mesinha ao centro do quarto, a morena cartomante, de lenço branco amarrado à cabeça, achava-se sentada à espera dele sentar-se diante dela.

Antes de se sentar diante da cartomante, fixou o olhar na toalha branca. Sobre ela, as cartas do baralho, a carteira de cigarros e o vidro de alfazema. Ele se arrepiou com a voz fanhosa da mulher, mandando-o se sentar na cadeira diante da mesa. Sentou-se incerto.

A cinza do cigarro da cartomante misturou-se nas cartas do baralho. Ele procurou respirar fundo, tentando se aliviar da fumaça do cigarro e do fedorento incenso. Acompanhou com os olhos a mulher a traçar, em silêncio, o baralho. Ela embaralhava as cartas entre os dedos finos e, em cada um deles, havia anel de preço baixo. Relembrou-se de que já vira ciganas rondando pelo Mercado Central. Andavam de saias longas, lenços amarrados à cabeça e de anéis, pulseiras e colares. Os comerciantes não lhes desgrudavam os olhos, muito mais para não serem roubados do que pela esquisitice do traje delas.

Uma pausa no traçado fez a cartomante para aspergir sobre as cartas a alfazema. A essência se espalhou pelo quarto, misturando-se com o fedor da cachaça. Ela voltou a traçar as cartas. Parou de novo para acender o cigarro. Segundo ela lhe revelou, aquilo era ritual para abrir canal com os espíritos. E ordenou-lhe de voz forte: “Corte em cruz, meu amigo”.

Diante da lerdeza dele, a cartomante traçou sobre as cartas o sinal da cruz e ordenou-lhe com voz rígida: “Corte as cartas e faça uma cruz sobre elas”. Mas ele, indeciso, suava. Meio sem jeito, cruzou com a mão direita trêmula as cartas. E ouviu a voz pausada da cartomante: “Eu vejo aqui prejuízo”.

- Prejuízo? Com quê?

A mulher, não se importando com a incerteza do cliente, pediu-lhe mais atenção para ouvir o que lhe dizia o espírito. E prosseguiu: “Não vejo coisa boa. Nas cartas, uma grande perda de gado”.

- Peraí, senhora. Agora me deixou...

- Escute as cartas, bom amigo. Não se pode duvidar.

Nem pouco ele entendia do que a cartomante lhe havia dito: prejuízo, perda com gado. Não se aguentou na cadeira e lhe ordenou a ser mais clara. Enfezou ele a cartomante: “Desembuche logo. Basta o que estou vivendo. Arrote a verdade”.

Antes da cartomante lhe pedir calma, ele esmurrou, com mão fechada, a mesa. A alfazema se espalhou pela toalha. Engolindo raiva, a cartomante lhe pediu paciência. Mas ele, nervoso, a gesticular com as mãos, esbravejou: “Pare de me enrolar, dona”. 

No entanto, a cartomante, usando-se de palavras persuasivas do ofício, forçou-o a sentar-se. Exigia-lhe dele paciência, para que entendesse as mensagens do alto. E mais uma vez ele se deixou levar pelo traçado do baralho. A cartomante lhe ordenou o corte das cartas em cruz e com muita fé. Ele cortou-as. A sibila ficou a meditar por instantes. Por fim, apresentou-lhe uma carta à altura do rosto dele: “Meu bom amigo, essa carta quando aparece é desgraça. E é com bicho de quatro pernas”.

- Que negócio de quatro pés. É com uma moléstia de saia.

Ele mesmo se revelou: veio saber se a amante Madalena, que vendia comida na barraca próxima à Matriz de Nossa Senhora das Dores, estava grávida. Ele era casado com uma mulher que vivia de casa para a igreja e não gostava de coisas de satanás. Bem sabia que Barbosa, lá do Mercado Central, vizinho do seu armarinho, havia atolado macumba na cabeça dele.

- Peraí, bom amigo. Não mexa com o oculto.

De pé para sair, ele mandou a cartomante para merda e jogou sobre a mesa duas cédulas de dez reais. A raiva tamanha fê-lo se assustar ao se ver com o trinco da porta do quarto em sua mão. Diante dele, Iara procurava tranquilizá-lo, pedindo-lhe calma. Não lhe deu ouvidos. Abriu com força a porta da frente. E antes de fechá-la, ouviu a fanhosa cartomante a gritar:

- Iara, esse homem mexe com quê?

- Com gado, mãe.

Quase que ele foi acertado pelo jarro, voando na sala de visitas. Quase que ele derrubou a porta da rua. Descontrolado, desceu a Rua das Flores sem óculos, sem chapéu e com língua presa na boca. Já dentro da casa de Madalena, soltou a língua: “Fale logo: está ou não está? Se estiver, vai ter de tirar”. De pronto, Madalena desafiou-lhe: “Não me obrigue a fazer aborto”.

Após três dias a refletir em casa e no armarinho, ele se dirigiu à casa de Madalena, decidido acabar com a chantagem. Entretanto, encontrou-a furiosa, por ele ter ido, segundo contaram a ela, chafurdar seu nome na casa da cartomante, sua inimiga. E com dedo indicador sobre o nariz dele, Madalena repetiu não fazer aborto. Assim, diante do desaforo de Madalena e sem se importar com os gritos da menina, atirou três vezes na amante.

Só se despertou do crime que havia praticado, ao estar sentado na bancada de cimento da delegacia, após ouvir a ordem do delegado para o subordinado: Manda entrar o da vez, cabo Machado”.
JN. Dantas de Sousa

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