Há quem se acostuma a divulgar fatos. Isso sempre foi
comum na Humanidade. Fofoca transita em roda de conversa. Descobrir segredo
parece que tranquiliza a alma. Muitos se acostumam a viver assim, como Janete Kiss, transsexual conhecido em Juazeiro do Norte.
Era ele querido e admirado por adolescentes, uma vez
que se destacava como artista de teatro, decorador, promotor de evento,
instrutor de modelos, cabeleireiro. Satisfazia-se andar acompanhado de garoto
ou de garota. Gesticulava bastante ao falar. Ao passar por um amigo de infância, olhava-o como
quem queria se comunicar com ele. Mas nunca imaginou de, um dia, estar junto
dele.
Numa noite de setembro, porém, Janete Kiss se sentiu ao lado dele. Imprevisível seja atributo do destino. Seu amigo e mais dez pessoas se reuniam na agradável casa de Antônio Maciel Brandão, conhecido empresário de joias folheadas. Conversavam assuntos vários, entre gole de bebida alcoólica e farta comida.
Pouco longe do grupo, do outro lado da piscina,
ouviam eles o grito nervoso de Janete Kiss. O transsexual ensaiava mocinhas para
o desfile patrocinado por uma butique de modas, o qual deveria ser
apresentado em outubro, numa festa anual de um clube social da cidade.
Mas logo que o grupo do ensaio entrou em intervalo
de trabalho, Janete Kiss, sem ser convidado, veio se sentar entre o grupo de irmãos da fraternidade secreta.
Sentou-se na cadeira vizinha ao seu irmão de infância. Desenvolto, conversava sorrindo para todos.
Entrosou-se rápido. Entre gole e outro de uísque, Janete Kiss começou a revelar factoides,
envolvendo a sociedade do Cariri, ou melhor, do triângulo Crajubar (Juazeiro do
Norte, Crato, Barbalha).
Já que conhecia muita gente, Janete Kiss descobriu quem saía com quem, quem traía quem, quem se traía, quem era traído… De repente, apontou para a adolescente, sentada sobre uma das caixas de som, à espera do recomeço do ensaio. De dedo indicador apontado para ela, anunciou à roda: "Aquela faz dois meses que abortou. Quase que ia. Mas está se recuperando".
Enquanto olhávamos na direção da garota franzina, de
xorte vermelho, Janete Kiss explicou que a jovem praticara aborto, pois o namorado
dela, empresário de joias folheadas, exigiu e pagou tudo. Janete Kiss quem
contratou a aborteira, famosa no Cariri. Mas não foi possível ele terminar a
história, já que vieram chamá-lo para continuar o ensaio.
Logo na sua ida, Antônio Caldas, antigo comerciante de miudezas na Rua São Pedro, a rua central de comércio na cidade, fez a sua crítica, ao afirmar que o viado já estragou a vida de rapazes e moças do Cariri. E proferiu sua imprevisível opinião: "Tem muita gente a favor de ser aprovado o aborto".
- E por que não? - adiantou-se Perbuário Rodrigues,
comerciante de ferro-velho, depois de beber uísque puro, sem gelo, fazendo
careta. E se justificou ao dizer que Lula falou que era contra o aborto, mas já
que era presidente era a favor, porque tratava de saúde pública.
Quase que Perbuário não terminava de falar. Dois levantaram
a voz em favor do aborto. Segundo eles, a prática do aborto era investimento na
qualidade de vida da população; e se o aborto fosse legalizado, seriam evitadas
milhões de mortes maternas.
Entretanto doutor Augusto Coelho, médico
ginecologista em Juazeiro do Norte,
pediu a palavra. Logo o silêncio e o respeito ao doutor amainaram a discussão. O doutor, educado, de voz
pausada e com boa dicção, deu seu parecer. Para ele,
o mundo estava acelerado. Havia pressa no ser humano para
resolver seus problemas. No entanto, havia situações que era preciso agir com
calma, para não cair no erro de se criar um problema novo para se resolver o
anterior.
Nem esperou a pausa da fala do doutor. Tenório Barros, dono de fabriqueta de calçados e metido a gozador, alertou para onde o doutor com o palavreado queria levar todo grupo. Atirou sua opinião desastrada: "Doutor, isso é coisa pra gente letrada". E não perdeu tempo. Continuou na sua tagarelice, ao querer provar que quem estava dentro do problema, o negócio era se livrar dele. E que apoiava Lula que distribuía grátis camisinha e pílula.
Tenório Barros se soltou mais: se a mulher faz no couro cru e pegar criança, tem mesmo de botar pra fora. Na verdade, a mulher tem que ficar livre da besteira que fez. E entre a risadaria dos demais do grupo, animou-se Tenório. Narrou o caso ocorrido com uma das suas vendedoras: ela errara com Raulzinho, o seu filho mais velho. Para não levar o caso adiante na Justiça, Tenório Barros pagou o aborto. Depois, a sua empregada lhe agradeceu, por não ter de tomar de conta de filho.
A partir daí, abafou-se o que doutor Augusto Coelho poderia ter explanado ao grupo sobre aborto. Desprezaram a fala do ginecologista.
Educadamente, o médico respeitou a vontade da maioria, que era beber, comer, ouvir forró, contar piadas.
Sentado ao lado do professor de Língua Portuguesa Roberto Mota, doutor Augusto Coelho, de voz baixa, anunciou-lhe: “Meu amigo, irei escrever sobre o assunto que desejei explanar aqui. Desses daqui, só tiro você. Tenho certeza de que você me lerá”.
Realmente. Uma semana depois, lia professor Roberto Mota, através de um
jornalzinho de Juazeiro do Norte, o artigo que doutor Augusto Coelho gentilmente mandou deixar em sua casa. No texto, o aborto é a morte de
uma criança no ventre de sua mãe, produzida durante qualquer momento da etapa
que vai desde a fecundação (união do óvulo com o espermatozoide) até o momento
prévio ao nascimento.
Ao ler essa passagem, o professor parou a leitura. Achava-se
sentado na espreguiçosa, no alpendre silencioso do quintal da sua residência.
Doutor Augusto Coelho o prendeu na rede da reflexão. Batia com o que a Igreja
Católica defende. O professou, então, penetrou em introspecção.
Lembrou-se de que, até poucas décadas atrás, a
medicina afirmava não sentirem dor os bebês. Logo, interrogou-se a si mesmo: quantos
sofrimentos não foram causados a esses pequeninos, submetidos a cirurgias sem o
uso de anestesia, até que a ciência comprovasse o contrário? Veio-lhe o
pensamento sobre o ultrassom, ao se referir o desespero do feto
no momento do aborto.
Retornou professor Roberto Mota para a leitura do artigo do doutor Augusto Coelho. Segundo ele, defensores do aborto procuram
encobrir a natureza criminal do aborto mediante terminologias evasivas. Ocultam
o assassinato com o jargão “interrupção voluntária da gravidez”; ou se usam de
conceitos como “direito de decidir”, “direito à saúde reprodutiva”. E o doutor
terminou o parágrafo se posicionando de que nenhum desses artifícios da
linguagem pode ocultar o fato de que aborto é infanticídio.
Deixou o professor para ler o resto do artigo em outra ocasião, uma vez que sua mulher havia chegado da rua, a se explicar das compras que fizera e a carestia em tudo. Mas, enquanto ela foi se
banhar, o professor caiu os olhos na folha do jornal.
Relatava o ginecologista sobre estudiosos a confirmar que, antes de três meses, não há ser humano. Depois, sim. Mas, logo
em seguida, argumentou ele: todo os que pretendem marcar a idade do
feto é como se quisesse fixar a idade máxima para reconhecer a pessoa como
humana. E, em sua conclusão, ele foi veemente: “Trata-se o aborto de crime
hediondo que a lei deve condenar severamente. A galinha não mata seus pintinhos
no ovo, nem a cobra mais venenosa mata seus filhotinhos antes de nascerem. A
vida é sagrada. É dom de Deus, precisa ser respeitada da concepção até a morte
natural”.
Do artigo do doutor Augusto Coelho, brotou no professor a vontade de escrever um texto sobre o assunto. Redigiu pouco: o
ser humano, formado pela união do espermatozoide do homem e o óvulo da mulher,
constitui um ser humano único sobre o universo. Por isso deve ser respeitado e
tratado como pessoa, desde a sua concepção. Além do mais, devem ser-lhe
reconhecidos os direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável à vida
de qualquer humano inocente.
Enviou Roberto Mota seu texto ao doutor. E ficou satisfeito quando, dois dias depois, o sábio cardiologista lhe respondeu, escrito à mão, o seu texto. Ainda, avisou ao professor que era a conclusão do texto anterior: “A mesma proteção e respeito merecem o ser humano concebido no útero e o gerado in vitro. O embrião e o feto hão de receber, como qualquer pessoa, o tratamento médico de que venham a precisar. A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção”. E concluía com duas passagens bíblicas: “Antes mesmo de te formares no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei” (Jr 1,5); e “Meus ossos não te foram escondidos quando eu era feito, em segredo, tecido na terra mais profunda” (Sl 139,15).
Bom foi que o doutor Augusto Coelho,
uma semana depois, em conversa por telefone,
elucidou ao professor Roberto Mota: Que entende esse presidente comunista, semianalfabeto,
ignorante em saúde pública, amigo Roberto? Querem matar covardemente
seres humanos inermes e incapazes de se defenderem, é isso? Isso é promover a
saúde pública? Pois bem, existem leis que, de maneira alguma, estão sujeitas a
qualquer autoridade humana por mais elevada que seja, pois atinge a
essência dos seres, inclusive o homem. Essa gente do Poder e da mídia nacional tem
de ter calma. O embrião é um ser humano completo em fase de crescimento tanto
quanto um bebê, uma criança ou um adolescente. Não se trata de um amontoado de
células. Quando se dá o encontro gamético, produz-se a primeira unidade da
vida, que contém toda herança genética e todos os requisitos para caracterizar
a vida. A prática de abortos, portanto, seria um retrocesso da saúde pública,
que, ao invés de investir na qualidade de vida da população, passaria a reproduzir
uma cultura de incentivo à morte, à violência.
O estudioso e reflexivo médico parou por um pouco, como
para saber o que o professor tinha a lhe dizer. Não desejando interrompê-lo, o professor aguardou mais sabedoria dele, como esta: Resulta mais barato, professor, para esses
apressados e imprudentes materialistas que a mulher assassine o seu filho antes
do nascimento e inclusive ao nascer, do que brindar a ela todas as condições
que a acompanhem antes, durante e depois da gravidez. E para não encompridar a conversa, professor Roberto, porque estou indo ao trabalho, demora-se um bocado para se tomar consciência de que não se pode violar a natureza, o ar, as
águas, as florestas sem pagar preço alto. A violação da vida humana trará a todos consequências ainda piores.
Depois de desligar o telefone, professor Roberto Mota, antes do desejo de beber o café, refletiu consigo: quem é que não sabe que há motivos para desentendimentos na questão do aborto - a morte da vida. Entretanto, sempre será possível reconquistar a paz e o bom relacionamento com a maturidade e a boa vontade dos homens, e se houver amor verdadeiro.
JN. Dantas de Sousa