Sete dias após ter saído do hospital, José Roberto Sobreira Cruz, o Sobreirinha, bancário aposentado, encontrava-se na casa da sua irmã Ana Maria
Sobreira da Cruz, no bairro Betolândia, em Juazeiro do Norte. Depois da morte
do marido, a irmã alugara a casa do centro da cidade e foi morar em sua
chácara, próxima à Missão Velha, acompanhada da querida prima, quarentona
solteira. Havia por lá árvores frutíferas, clima agradável, água saborosa,
silêncio constante. Lá, era o lugar ideal para o descanso de quem, como o irmão Sobreirinha,
procurava se ausentar da cidade, a fim de restaurar a saúde física e
psicológica.
Em final de tarde de junho de 1978, já começando a esfriar, os dois irmãos, jogavam pife-pafe no alpendre da casa. Mas
logo que os dois terminaram a terceira partida, Ana Maria jogou a vergonha de
lado e perguntou ao irmão o que lhe causara na cidade tanto aborrecimento, a
ponto de ele ter sido internado às pressas no hospital.
- Você demorou, mana - lastimou-se Sobreirinha,
de cabeça baixa. Após pequeno silêncio, filosofou: - Tudo tem sua hora, mana, tudo
tem seu dia. É bom se encontrar com um amigo depois de anos de ausência. Mas bom mesmo é ser prudente, para não se queimar como eu me
queimei.
Sem entender as palavras do irmão, Ana Maria derramou-se na confortável cadeira de balanço. Ainda, especulou o irmão a respeito do amigo e o porquê da sua queimadura. Desde criança, a irmã apreciava detalhes. Assim, ao se ver preso no laço da curiosidade, Sobreirinha, ajeitando as palavras, conforme advertência do médico, explicou-lhe que saíra de casa a fim de fazer o seu passeio habitual antes do almoço. Na Praça Padre Cícero, encontrou-se com Deca Marcolino. E revelou a irmã: "Deca hoje é outro, mana. Mudou bastante. Cabelo acajuado, óculos escuros, camiseta sem mangas, de bermuda florida, sapato branco sem meias. Um bóizinho, jeitão de carioca. Lindo como sempre. Nem bem me viu, correu para mim. Me deu um abraço de quebrar ossos e um beijo que me perfurou o coração. Anunciou-me ter vindo de carro particular a fim de passear quinze dias pelo Cariri. Como sempre, rapaz solitário".
Antes de os dois se sentarem na Praça Padre Cícero, Deca Marcolino passou a reclamar da reforma da praça, do desconforto dos bancos de tiras de madeira. Buscou logo especular sobre o prefeito de Juazeiro do Norte.
Explicou-lhe Sobreirinha ser ele um médico e não juazeirense. E Deca protestou dando socos no ar: “Médico? Só podia ser médico. Esses mecânicos de gente se tornam políticos, lucrando com a desgraça do povo”. Ainda se mostrando agitado, Deca buscou acender o cigarro. Depois de acendê-lo e dar a tragada demorada, apontou para um banco da praça e perguntou ao amigo: “Tu estás lembrado daquele banco ali, querido Sobreirinha? Aquele que o velho português, Seu Manuel Arcanjo da padaria, gostava de se sentar”.
Por aquela inesperada recordação, jamais Sobreirinha esperava Deca Marcolino ressuscitar aquele malfeito do tempo de adolescentes. Para satisfazê-lo, Sobreirinha lhe revelou que Seu Manoel Arcanjo não descobriu os autores do malfeito. E, para se afastar da insistência do amigo em querer dar continuidade ao desagradável assunto, convidou-o a irem beber uma garrafa de cerveja na lanchonete da esquina da Rua do Cruzeiro com a Rua São Pedro.
Rumaram, então, para lá. Na mesa da calçada, enquanto bebíam cerveja, apreciavam o movimento da Praça Padre Cícero e da Rua São Pedro, na manhã de terça-feira e de comércio fervendo. Dentro da lanchonete, o dono sentado no caixa, o garçom a olhar para ambulantes com banca na calçada do bar, e quatro romeiros a lanchar. Havia, ainda, o alcoólatra sozinho na mesa ao lado, de copo seco e palitando os dentes.
Sem se importar com o povo da lanchonete, Deca Marcolino, após a terceira cerveja, voltou-se para o mesmo assunto, de voz alta: "Sobreirinha, aquele Meninim era um cão vestido de gente. Mas onde andará Meninim agora? Ainda pratica suas loucuras?".
Sobreirinha despistou Deca para outra conversa. Não pretendia esticar o assunto. No entanto o amigo, esquentado de cerveja, voz alterada, passou a relembrar-lhe a presepada de Meninim na Praça Padre Cícero, na década de sessenta. Por sinal, esse fato repercutiu mais pelo centro de Juazeiro do Norte. O jovem Meninim, para descontar os cascudos que levava de Manuel Arcanjo, ao ser pego roubando bolacha em sua padaria, conseguiu seduzir Sobreirinha e Deca para auxiliá-los na montagem da bomba-relógio (uma bomba de festa de São João com um pedaço de cigarro, preso no pavio duro). Foi o próprio Meninim que pregara a bomba com fita isolante embaixo do banco onde Seu Manuel Arcanjo gostava de se sentar na Praça Padre Cícero.
Perto das onze da manhã,
Meninim acendeu depressa o cigarro, ao avistar o velho se aproximando do seu
costumeiro banco. Os três se postaram por detrás da coluna da hora, à espera da
tragédia. No momento em que Seu Miguel Arcanjo se achava bem instalado no
banco a fumar seu charuto, deu-se o estrondo da bomba. De um pulo só, vermelho
que nem pimenta, em meio à fumaça, gritava Seu Manuel Arcanjo no seu próprio
lusitano: “Filhos da puta. Filhos da puta da senhora sua mãe”.
Os motoristas da praça não conseguiram
acalmar Seu Manuel Arcanjo, porque ele andava de um lado a outro, com o charuto
pregado no canto da boca. Jurava, aos gritos, vingança. Só se acalmou com a
chegada de dois policiais. Diante das autoridades, Seu Manuel Arcanjo, de voz
tremida, jurou pagar aos dois, bem pago, se encontrasse o desordeiro de uma
figa.
- E aí, Sobreira? Essa história parece
que não tem fim? - interrompeu Ana Maria ao Sobreirinha.
Por estar de favor na casa da irmã, Sobreirinha
engoliu a provocação. Para disfarçar, limpou devagar o nariz com o lenço. Em
seguida, guardou-o no bolso do pijama. Ainda em obediência médica, buscou
calma, ao ponto de gaguejar e de aparecer lágrima. De voz lenta, continuou a conversa: “Por causa da conversa alta do Deca Marcolino, mana, o alcoólatra se meteu entre nós dois”.
O alcóolatra começou a falar aos dois amigos sobre Meninim. Disse que ele e Meninim tinham servido, na mesma época, o tiro
de guerra. Os dois aprontaram tanto que o sargento quase que endoideceu. Ele e
Meninim deram, entre outras diabruras, a roubar galinhas do povo do Horto,
para fazerem tira-gosto. Ele e Meninim aprontavam com cachaça e maconha nas
cabeças. E o pior de tudo: Meninim deu para o que não prestava.
- O bêbado, mana, disse para nós dois que, antes de Meninim ir para o inferno, trabalhou até de pistoleiro, para Seu Manuel Arcanjo. Era unha e carne com o dono da padaria.
Diante da novidade sobre Meninim, Deca Marcolino se levantou da cadeira e gritou para Sobreirinha: “O Meninim da bomba se tornou pistoleiro...”. Ainda bem que o bêbado, sem mais forças para se segurar, derreou o corpo sobre a mesa. Num instante, o garçom correu para desemborcá-lo, com grosseria. Jogou-o ao chão como se fosse um saco. Diante da perversidade, Sobreirinha implorou ao garçom calma. Referiu-se que conhecia o rapaz: um coitado, caído no vício, vagabundo e a vergonha da família.
Após ter o bêbado ouvido as considerações do Sobreirinha, voltou-se para o garçom e disparou: “Meninim era homem, Seabra, e não esse viado sem-vergonha que me chamou de vagabundo...”. Ainda, de dedo estirado para Sobreirinha, lançou o ébrio seu testemunho para o bar inteiro ouvir: "Eu fui um caso de amor dele".
Diante de Ana Maria, o irmão se derramou em lágrimas. Chegou a soluçar, a tossir, até se engasgou com saliva. A irmã e a sua companheira o levaram para o quarto a fim de Sobreirinha descansar. Não conseguiram acalmá-lo, uma vez que, deitado na cama, a esconder o rosto com o lençol, registrou o que acontecera após a decepção: "Só me lembro, Ana Maria, da anarquia ecoando na lanchonete".
Chegou Sobreirinha a perder juízo e ficar como cego. Só se despertou na cama do hospital. Ao seu lado, Deca Marcolino, dava-lhe massagem. Segundo Deca Marcolino, parecia que o querido amigo havia incorporado o espírito de Meninim.
Antes de Sobreirinha entrar no sono profundo, após engolir o tranquilizante, balbuciou para Ana Maria e prima ao lado da cama: "Ai que vergonha. Ai que horrível decepção".
JN. Dantas de Sousa