Por que, meu Deus? Por que o destino
foi amargo comigo? - lastimou-se Emanuel ao levantar-se da cama, em busca de
outro cigarro. Acendeu-o, olhando para a chama do isqueiro roxo lhe dado por Emanuela
na noite anterior, véspera do feriado de doze de outubro.
Voltou a sentar-se na cama, a segurar
com as mãos à cabeça. De olhos fechados, deixou a fumaça lhe incensar o rosto.
A casa em profundo silêncio o atormentava. Nos outros dois quartos após o dele,
dormiam seu pai e sua mãe, e sua única irmã, Maria Tereza, em seu belíssimo aposento.
Sentiu Emanuel vontade de arrancá-los da cama para lhes contar a verdade. Mas
logo palpitou nele as suas reações. Pensou em procurar alguém para se
desabafar. Recuou de vergonha. O segredo desceria consigo ao túmulo.
- Por que, meu Deus? Por que o destino
foi amargo comigo?
Abriu a janela do quarto, que dava para
a rua. Deixou-se ficar debruçado na janela, entre baforadas do cigarro, a
observar a Rua Dom Pedro II sem ninguém. Apenas as folhas e os finos galhos de
algarobas, em frente às casas, balançavam-se à ventarola de lua cheia.
Acompanhou o relógio do Santuário de São Francisco das Chagas tocar três e
trinta. Levantou a vista para a torre: três e trinta. Os ponteiros separados recordaram-lhe
a grave decepção. Para desviar a imaginação, navegou lento os olhos no céu
estrelado. Não contente, desceu os olhos pela alta torre da igreja até o
Passeio das Almas, que arrodeava a igreja. Parou diante da estátua de São
Francisco no meio da praça, em frente ao santuário. O
guarda-noturno, vestido de preto, mais o boné preto, apareceu e sumiu. De
repente, a rasga-mortalha, que sobrevoou o poste elétrico, cantou alto, a lhe cortar
o sutil desejo de não mais reencontrar Emanuela, além de lhe ferir o coração
asfixiado de angústia.
- Não devia ter me enrolado com ela.
Retornou para a cama Emanuel, a fim de
refletir sobre a noite de onze de outubro de 1978. Não conseguia entender a
traiçoeira marca do tempo. Pela primeira vez, ele e a namorada se dirigiram ao
motel, na saída do Crato. A felicidade fê-lo derramar lágrimas. Reviveu a cena:
ao levar Emanuela à casa dela, em seu carro, ela se assustou com a hora do
celular: vinte e duas horas e quarenta minutos. Havia a namorada prometido à
mãe que, após a aula na universidade, retornaria para casa.
Sentou-se Emanuel na cama e acendeu
mais um cigarro com o isqueiro roxo. Enquanto fumava, remoía passado:
ao deixar o motel, Emanuela mordia os lábios e roía as unhas. Ao descer do
carro, ela se apressou para entrar em casa. Ele desejou correr para os braços
da namorada. Mas somente ouviu o boa-noite gelado, sem o costumeiro beijo a voar
da mão de Emanuela.
Parado diante do carro, Emanuel passou
a contemplar a casa da amada. Seis cervejas que só ele bebera, cresceu-lhe o enjoo.
Tentou segurar a vontade de vomitar. E não deu outra: sentou-se no meio-fio da
calçada e vomitou. Pareceu-lhe o corpo jogar também para fora a dor da
separação. E somente se refez da situação incômoda ao ouvir palavras carinhosas
de Emanuela, tentando reanimá-lo.
Os olhos da amada a sorrir levou para
longe o amargo da bebida. Em prazeroso silêncio, deixou-se ser carregado por Emanuela
até a sala de visitas. Encontrou-se, por fim, de camisa aberta, deitado no
sofá. A mãe dela em sorriso brando o recebeu, como das outras vezes, de modo
educado. E pouco demorou na sala, indo de volta para o quarto de dormir.
Envolto pelo silêncio da tranquila noite
cratense, Emanuel pressentiu o destino irônico a sorrir para ele pelas gretas
da janela da rua. Fora ele quem o conduzira até o Crato, para o aniversário
natalício de uma amiga. Depois, colocou-o diante de Emanuela. Enquanto os dois
ouviam Belchior a cantar Como Nossos Pais, escorados na janela da sala da
frente, saborearam o primeiro beijo.
- Jamais, Emanuela. Jamais verei você.
Foram dois anos e três meses de namoro.
Várias idas, em seu carro, sozinho, até o bairro Pimenta, onde Emanuela morava.
Vários retornos para Juazeiro do Norte. Não podia se esquecer da mãe dela,
acolhendo-o em casa. Ainda dormiu lá, por quatro vezes. Não se chegou, no
entanto, a acontecer o primeiro ato sexual à noite, uma vez que Emanuela passava
a dormir mais a mãe, no mesmo quarto. Entretanto, quando a mãe dela precisou
ausentar-se, a fim de auxiliar uma prima moribunda, ocorreu o momento do prazer
carnal, no quintal da casa, à tarde.
- Jamais eu deveria ter aprontado.
Na madrugada do feriado de Nossa
Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, enquanto os dois brotavam palavras
amorosas no sofá da sala de visitas, Emanuela lhe sussurrou para não acordar a
mãe. Em seguida, de semblante triste, confessou-lhe que seu pai não morava com a
mãe e ela. Contudo ele nunca havia falhado nas despesas e nas frequentes visitas.
- E onde seu pai mora, Emanuela?
- Em Juazeiro. Mas trabalha aqui.
Pelo rosto de Emanuel, algo lhe deixou contrariado.
Não se conteve. Perguntou-lhe o nome do pai. Mas imediatamente, no coração dele, atravessou-lhe uma lancinante punhalada.
Diante da amante, acautelou-se. A língua quis espumar de ódio. Reteve-a, pois a
revolta não fazia parte da educação dele. Jamais causaria escândalo a quem lhe
dava amor e sonhava o dia do casamento. E ainda que Emanuela lhe rogara para não retornar para Juazeiro do
Norte, antes de clarear o dia, não conseguiu detê-lo.
Fechou Emanuel com força a janela do quarto. Atirou-se de bruços sobre a cama. Dentro dele, o doze de outubro se transformava num dia feriado de suplício e até desejo de suicídio. Não conseguia dormir e fumava. Escutou o relógio da torre da igreja a badalar seis horas. Ouviu as chinelas do pai, dirigindo-se ao banheiro. Fez menção de levantar-se, ir ao encontro do pai, que iria cumprir mais um dia de trabalho. Só que a prudência, segurando-o pelo braço, alertou-lhe que deixasse o fiscal do Estado José Ribeiro Gomes, bem próximo de se aposentar, continuar os seus quarenta e nove anos de casado com sua coitada mãe.
Assim, na manhã do Dia da Criança, Emanuel resignado preferiu ficar deitado na cama, em seu quarto, determinado a devorar o último cigarro, aceso com o último presente lhe dado por Emanuela: o isqueiro roxo.
JN. Dantas de Sousa