Enquanto as mulheres aguardavam dentro
da capela de São Francisco das Chagas a chegada do pároco, os homens e alguns
adolescentes conversavam pela pracinha diante do pequeno templo, no distrito de
Cajueiro, município de Santana do Cariri. Meninos com meninas se entretinham a
correr e a gritar ao redor da igrejinha.
Naquela tarde de começo de novembro,
estava para acontecer no distrito batizado de quatro crianças. Embora fosse calor,
sentia-se tarde de sol fraquinho, com brisa agradável e admirável paz. Viam-se
moradores a conversarem sentados nas calçadas de suas casas, e cachorros
vadiavam pela terra marrom-clara da rua.
Diante de três homens, sentados no
espaçoso banco da praça, próximo ao templo, um comerciante de atacado Antônio Amâncio,
estabelecido em Juazeiro do Norte, ouvia seu amigo do Cajueiro a lhe narrar um
acontecido passado em sua vida. Ao findar, o terceiro da bancada começou também
a contar seu caso. De repente, deu-se corre-corre e gritaria de meninos e
meninas, em direção ao fiat uno vermelho-vinho. Era o pároco de Santana que
chegava, acompanhado de dois rapazes, para auxiliá-lo no ato de batismo.
Imediatamente, dois homens que
conversavam no banco se foram para dentro da capela, para se juntarem ao
pessoal do batizado. Ficaram sentados no banco Antônio Amâncio e Orlando. Não
deu tempo do comerciante juazeirense se retirar do local, a fim de ir assistir
à cerimônia litúrgica com a esposa. Orlando agarrou-lhe o braço direito e fê-lo
sentar-se junto dele.
Antônio Amâncio não pode assistir ao batizado.
Ficou preso no banco para escutar Orlando, a baforar ar de bebida alcoólica: “Parece que minha
história era só pro cidadão. Deus sabe fazer a coisa certa”.
O comentário de Orlando fez Antônio Amâncio
cego e surdo para a cerimônia batismal. Fixou o olhar naquele senhor de boné e
olhos a piscarem rápido, por trás de duas lentes de míope. Antes de Olavo
entrar na história, declarou-lhe, esmurrando a própria barriga, estar dentro de
setenta e dois anos e gozando saúde de ferro. Comia de tudo, até pau e pedra.
Bebia todo tipo de bebida com álcool. E concluiu: “Mas quando eu era rapaz, a
bandida da morte quis me levar. Minha sorte foi Nossa Senhora das Dores que me socorreu”.
Sem saber como a doença entrara nele,
Orlando na época se achou um fracassado. As pernas se tornaram molambo, e o que
comia lhe ofendia. A barriga inchava, como mulher de menino crescendo nela.
Tempo inteiro a dor desgraçada, castigando-o. Pinicava nele dor de cabeça,
feito carrapato grudado no animal. Médicos da cidade de Santana não davam jeito
no seu doenceiro.
Dentro de casa, a prateleira abarrotava
de remédio, que nem farmácia sortida. Também havia tomado todo tipo de remédio
do mato, que no Cajueiro lhe ensinavam. Sentia-se empanzinado de tanta droga e
andava falando aresia, como doido, drogado.
Certo dia, numa quinta-feira de quinze
de setembro, Orlando voltava da roça, de tardezinha, sem aguentar a enxada, a
cabaça d’água e o saco do de-comer. Parou no meio da estrada e, ajoelhado a
olhar para o céu, se valeu de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: “Padroeira de
Juazeiro do Norte, neste seu dia de festa, de romaria, de procissão, e ajudada
pelo seu grande devoto padre Cícero do Juazeiro, me dê a minha saúde de volta”.
Não deu três dias, anunciou Orlando ao
comerciante, para Nossa Senhora atender a ele. Na segunda-feira, meio da tarde,
depois de ter terminado as compras na feira do Crato, já próximo do caminhão
sair de volta para o Cajueiro, Orlando se viu no maior aperreio de um homem enfrentar.
A dor e a gastura eram tanta chega ele suava frio, e sua visão queria fugir
dele. Vendo-se que iria se entregar à nojenta da morte, decidiu se sentar num
saco de feijão, dos que iriam ser botados em cima da carroceria do caminhão. Ao
começar a tresvariar e a imaginar na sua dormida final, a voz de um homem soprou
no seu ouvido.
O homem, para Orlando, era desconhecido,
porém se mostrou ser caridoso. Ajudou-o a subir a carroceria, sempre o animando
a viver. No meio da viagem, seu protetor avisou a ele que, se tivesse fé,
poderia ficar são e salvo. Pediu-lhe para seguir fielmente seu conselho:
tomasse o remédio que ele iria lhe ensinar.
Em meio ao tamanho desespero, Orlando
prometeu ao estranho lhe obedecer dali em diante. Assim, no dia seguinte, o
doente agiu de acordo com o que o desconhecido lhe ensinara. Durante noventa
dias, Orlando se dirigiu sozinho ao mato. Lá, retirou pedaços da casca do pinhão
e aparou vinte pingos do leite que saía da árvore numa xícara. Em seguida, bebeu
a mistura com café.
- Mas o bom é o que vem. Por isso, eu
ando penando.
Ao aguardar Orlando explicar o porquê
de andar penando, os dois foram interrompidos pela animação das pessoas a
saírem da igreja, após o final do ato litúrgico. Antônio Amâncio e Orlando
acompanharam os pais de uma criança recém-batizada e os seus convidados.
Enquanto os dois caminhavam atrás do grupo, Orlando, sem soltar o braço direito de Antônio Amâncio, lhe explicou haver andado à procura do desconhecido, o passador do remédio. Por mais esforço, Orlando nunca chegou a descobrir o paradeiro dele. O proprietário do caminhão jurou a Orlando de nunca ter visto passador de remédio viajar no seu caminhão naquela segunda-feira. E foi incisivo: não se lembrava de ter visto, nem de ter subido, nem ter descido, nem pulado sem lhe pagar a passagem.
JN. Dantas de Sousa