Na barbearia de Mestre Chico, Zé
Badola se esforçava no cochilo e outro para atentar-se ao barbeiro cortar seu cabelo e a ouvir o jovem a contar a história sem graça e sem ver o fim. Eram dez da
manhã. Quatro passarinhos, em cada gaiola, pulavam de poleiro a outro, saciados de comida
e de banho nas caqueiras. O cantar de pássaros mais o som alto do rádio e a
fala fanhosa do insosso freguês escondiam o barulho dos feirantes e dos
compradores em torno do Mercado Senhora Santana. Incomodado da monotonia no ambiente, o idoso Zé Badola,
antes mesmo do freguês acabar a cantilena, pediu a palavra ao Mestre Chico. Logo foi ajudado pelo barbeiro, ao bater com a palma da mão no armário de madeira. E Mestre Chico já se foi adiantando: "Zé Badola, por ser mais velho, goza de privilégio. Além
disso, história contada por Zé Badola é como banana-prata doce: gostosa de engolir".
Ao lhe conceder a palavra, após despachar o freguês insosso, Zé Badola se botou a filosofar com sua tirada. Uma introdução que levou os da barbearia ao pasmo: “No mundo existe tanta gente mal-agradecida, que até Deus duvida”. Isso derramou silêncio na barbearia, inclusive dos passarinhos. Mestre Chico baixou o volume do rádio, e passaram a ouvir o pouco barulho da feira e do mercado Senhora Santana.
Para Zé Badola, o fato dele aconteceu de verdade. Seu finado pai todas as vezes em que contava o ocorrido, por primeiro afirmava que Chico-espinheiro demorou se mudar para o outro mundo. Sujeito afoito desde novo. Possuía cara avermelhada, como se quisesse botar sangue pelo rosto. Casado, pai de dez filhos, mas vivia como galo atrás de franga. Cabarezeiro e viciado no álcool. Não escapulia de arenga e se saía bem em todas. Diziam ser Chico-espinheiro sortudo, porém o dia dele chegaria.
Numa certa madrugada, Chico-espinheiro, após o comício político, a duas léguas de onde morava, vinha em cima da carroceria do caminhão, apertado de gente, parecendo formigueiro. Quando ninguém esperava, quebrou-se a caixa-de-marcha do veículo, ao descerem a ladeira empinada. O estrago foi grande. Morreu motorista, os da boleia e os da carroceria. Só Chico-espinheiro se salvou. E Zé Badola comentou: "Viram que homem de sorte. Mas tem mais".
O seu “tem mais” animou a curiosidade de saberem como Chico-espinheiro iria morrer. Zé Badola, então, continuou noutro caso: Chico-espinheiro, ano depois de se salvar, seguiu com grupo de amigos, em cima dum caminhão, para assistirem a uma partida de futebol. Jogaria, naquele dia, o time do distrito onde ele morava contra o de um sítio que ficava a quase duas léguas de distância. Diziam que o time adversário era formado por jogadores de olho amarelado. Segundo Zé Badola, gente de olho amarelado era perigoso: não levava desaforo para casa.
Após o time do sítio ter perdido por três a zero, a torcida e os jogadores do distrito de Zé Badola, na boleia e na carroceria do caminhão, prontos para partirem, começaram a vaiar os perdedores. Não deu outra: mesmo com a noite quase cobrindo o campo de futebol, os de olhos amarelados cercaram o veículo. De repente, em meio às lâmpadas fraquinhas, surgiu um grandão de voz troante, metido a líder. Desafiou, de foice levantada, os do caminhão descerem. E quem não descesse, avisou o grandão, era baitola e corno.
Diante do desaforo, Chico-espinheiro não contou dez: pulou da
carroceria e se atirou para cima do desafiante, sem nenhuma arma. Não poderia levar sorte: recebeu para valer duas foiçadas: uma no braço direito e outra na
perna esquerda. Devido ao alvoroço dos amigos de Chico-espinheiro a fim de salvá-lo,
o grandão e os do sítio sumiram. A toda pressa, os amigos do ferido o jogaram sobre a carroceria. O coitado gemia e pedia por caridade rapidez para não
morrer antes de chegar ao hospital da cidade. E de novo Zé Badola se usou do comentário:
O silêncio dominou a barbearia. Zé Badola teve de continuar: Chico-espinheiro se recuperou rápido. Daquela vez, decidiu desabar pelo mundo. Assim, deixou mulher e dois filhos, pai, mãe e irmãos, para ir buscar trabalho no Amazonas. Entretanto, naquele estado brasileiro, ele se defrontou com o seu problema mais grave.
Ao atravessar um rio quase do tamanho do mundo, a embarcação, lotada de gente e de bicho, começou a se afundar. A assistência não teve tamanho: polícia, embarcação, avião e tudo o que pudesse para achar sobreviventes pelo rio. Foi igual a uma guerra. Ainda conseguiram encontrar bocadinho de corpos e deram por terminadas as buscas. E Zé Badola estrondou a gargalhada, chega os passarinhos se amedrontaram nas gaiolas. Até mudou o comentário: "Que homem sortudo. Soube Chico-espinheiro o mistério de se salvar nos perigos".
Ao lutar para se
salvar, nadou que nadou. Quase morto de cansado, sem mais um pingo de força, sem mais nem olhar para o céu, Chico-espinheiro ouviu uma voz no meio da água.
Avistou depressa a visagem: o homem iluminava, vestido todo de branco, em pé no barco, dava-lhe sinal que iria ajudá-lo. O desconhecido salvou Chico-espinheiro. Agarrando-lhe pelo braço direito, colocou-o dentro da barca. Enquanto se
dirigiam para a terra, o salvador de Chico-espinheiro se deu a conhecer de pouco
a pouco. Primeiro, a falar manso, fez Chico-espinheiro voltar no tempo.
Relembrou-lhe o dia do acidente do caminhão na ladeirona. Depois, recordou-lhe
as duas foiçadas após o jogo de futebol. Por fim, o desconhecido lhe revelou quem era.
- Sabem quem era o desconhecido? Querem saber? Tem gente aqui que não vai
crer - atiçou a curiosidade Zé Badola. - Pois o desconhecido era o anjo da guarda dele. Mas o pior foi que Chico-espinheiro sempre foi cabra malagradecido.
- Mas, Seu Zé Badola,
tomou-lhe a palavra Mestre Chico, encarando o ancião pelo espelho. - Por
que foi ele mal-agradecido, e logo com seu anjo da guarda?
Ao acalmar a barbearia, cerca de minutos de silêncio, Zé Badola em lenta voz explicou como Chico-espinheiro atreveu falar para o seu anjo da guarda depois de ele estar são e salvo, em terra firme: “E por que, seu filho da puta, não veio me salvar quando tiveram de me casar à força?”.
Para a barbearia voltar à realidade do mundo, até os pássaros aguardaram Zé Batola apresentar o fim da história. E ele concluiu: cada vez que o finado pai contava a história, ele repetia que Chico-espinheiro demorou a se mudar para o outro mundo. Mas nunca ninguém conseguiu saber o fim dele.
JN. Dantas de Sousa