Mal Ernesto Ferreira proferiu alto o
nome doutor Brandão e o cargo dele na chefia da Secretaria da Fazenda estadual,
em Juazeiro do Norte, Onésimo Gonçalves dos Santos, conhecido atacadista de
cereais na Rua São Paulo, arremessou-se da cadeira de camisa aberta, com a barriga
caindo por cima do cinturão, os cabelos do tórax a aparecer, e mandou-lhe tapa
nas costas. Essa típica encenação ocorreu após a celebração da última noite da
novena a São Francisco, dia três de outubro de 1988, no espaçoso pátio em
frente ao Santuário de São Francisco das Chagas, em Juazeiro do Norte.
Embora o povo do Cariri amargasse o
estirão da seca verde e do arrocho fiscal do novo Governo do Ceará, arrotando Mudança,
quão foi a alegria do comerciante Onésimo ao se encontrar com doutor Francisco
Brandão Magalhães. Para os comerciantes da cidade, o novo chefe, transferido há
quatro meses, ainda não havia saído da toca.
Ao se desgarrar dos braços de Onésimo,
doutor Brandão caiu areado numa cadeira, com vontade de vomitar, por causa do
bafo de álcool e cigarro, saído do comerciante. Ainda leso, ficou vendo o
atacadista afastando as mulheres para um lado e, ao mesmo tempo, gritando para
a esposa se agilizar no refrigerante de caju para a esposa do chefe e cerveja
para os dois amigos:
- Avia, mulher, avia. Quem tá na festa
tem de se fartar.
Com as pernas lá e cá, calças
arregaçadas até os joelhos, Onésimo, já sentado, empurrou o copo de cerveja por
debaixo do bigode amarelado de fumo. Na golada, o líquido se sumiu de vez. Permaneceu
quieto, aguardando Ernesto Ferreira derramar lamentação para o novo chefe,
devido a faltazinhas no trabalho. O coitado do compadre se demorava num
chove-não-molha, corroendo-se em desânimo, e nada se parecia bom para ele. Só
imaginava doença, falta de dinheiro, carestia. O trabalho mais caía como pesado
fardo às costas, numa árdua caminhada, pisada em brasas de desilusão.
Segurando
paciência, Onésimo procurou assistir ao leiloeiro baixinho e careca, trepado na
mesa, arrematando o peru. De repente, gritou bem alto: “Cem. Eu boto cem
fechado”. Para encurtar a choradeira do Ernesto, anunciou ao doutor: “Vamos
rasgar o bichim nos dentes, doutor Brandão”.
Nem andou cinco minutos o relógio da
torre da igreja, e o leiloeiro deitava, nos braços de Onésimo, o peru.
Esquentou-se a festa. Enquanto a esposa desembrulhava o pacote, o comerciante
abarrotava os três copos de mais cerveja e falava bem alto que o que possuía
era para os amigos. Logo ao redor da mesa, dois comerciantes, cheios de gracejo
e álcool, vieram buscar pedaço do peru. E Onésimo botou moral: “Calma, dá pra
tudim. Mas o primeiro é do doutor Brandão”.
Para não deixar a festança esfriar,
Onésimo Gonçalves, já roendo o osso da coxa do peru, puxou a cadeira mais para perto
de doutor Brandão. Começou a mastigar fatos da própria vida. Era filho de
agricultor pobre da Paraíba. Arriou-se mais os pais no Juazeiro do Padre
Cícero. Trouxeram só cacarecos num Chevrolet cai-aqui-cai-acolá. O Juazeiro
ainda era comecinho de cidade. Pelas ruas, havia romeiro que nem
formigueiro. E declarou ao chefe da Fazenda: “Aprendi muito com a
romeirada, doutor Brandão. Dizem ser gente tola, mas é muito do sabido. Digo e
assino”.
Derramou Onésimo Gonçalves pela
garganta outro copo de cerveja. Enquanto limpava o bigode na manga comprida da
camisa, saiu-se a elogiar doutor Brandão, homem grã-fino da capital, cheio de
estudo, parecendo viajado. Tão diferente dele, sem possuir saber de escola, a
não ser o do batente do mundo. Para chegar àquela vida de mais facilidade, suou
que suou. Conseguiu, com ajuda do céu, instalar seu próprio negócio. Fez de
tudo que um cristão pudesse avaliar. Começou em Juazeiro do Norte varrendo e
espanando a loja de vender estátua e imagem de santos, perto da Matriz de Nossa
Senhora das Dores. Depois de dois anos, subiu a vendedor de balcão numa casa de
tecido da Rua São Pedro, a rua do comércio forte. Foi lá que aprendeu a ser
mais ativo: botou-se a vender tecido ruim por bom e a entender como mexer nos
papéis da loja. Subiu mais para cima. Pegou a patente de gerente da firma.
Corria tanto na loja que, no dia da feira do sábado, comia de pé com o prato na
mão. E se espalhou: “Pois é, doutor Brandão. Ainda hoje, não sou rico de se
esborrotar. Mas tenho uns cacarequim, n’é não, compadre Ernesto?”.
Amaciando os cabelos do tórax, o
comerciante ficou a aguardar a aprovação do compadre. Desconfiado, Ernesto
Ferreira balançou a cabeça de cima para baixo, sem olhar para o chefe da
Fazenda. Meteu-se a engolir cerveja, para depois ciscar ossos na bandeja.
Onésimo, contente e de bigode espumoso,
convidou os dois amigos para mais uma rodada de cerveja. Afinal, ele mesmo não
poderia deixar entrar pelo ralo aquela chance de dar água na boca. Diante dele,
compadre Ernesto lhe trouxera de bandeja a autoridade de lá de dentro da Fazenda
do Estado. Tão diferente andava o compadre, já se mostrando pesado no seu
bolso. Da última vez que lhe pedira mais um favorzinho, Ernesto Ferreira
enrolou, enrolou, não conseguindo nada. O compadre perdia a graça, não mais lhe
cortava os fiapinhos dos números da Fazenda. Ele dava uma de mané-égua, sem
querer se desgrudar da política tradicional. Perdia restinho de
força lá na Secretaria da Fazenda do Estado. Por isso, precisava, naquele
momento, ele mesmo, Onésimo Gonçalves dos Santos, botar quiabo no passo do
chefe à sua frente:
- Vamos, doutor Brandão, cair na
cerveja, pra festejar nossa amizade.
Entretanto, no momento em que o novo
chefe da repartição estadual se animou para mais beber, a esposa dele, em pé,
alertava-o para irem atrás dos filhos, deixados em casa sem ninguém. Aquilo
deixou Onésimo ofendido. Tentou levar adiante objeções: que não se importasse
não. Os meninos estavam na proteção de Deus. Ninguém ia fazer munganga com os
bichinhos não. Mas o converseiro do Onésimo Gonçalves não conseguiu derrubar a
mulher do doutor Brandão. Assim, para agradar a ela, o comerciante, de cabeça
baixa, ficou a resmungar entre dentes: “Mãe é mãe. Mãe é mãe”.
Teve de parar a lamentação ao perceber
doutor Brandão com a mão no bolso, a fim de retirar a carteira do dinheiro. De
imediato, Onésimo repuxou o braço direito da autoridade, quase o arrancando do
lugar. E lhe ensaiou a esperteza: "Peraí doutor, peraí. Não se avexe não.
Compadre Ernesto mais comadre Belinha já são de casa. O senhor pode se achegar
no nosso armazém. Apareça lá, doutor. Apareça".
- Está vendo, Brandão? Veja como é
compadre Onésimo. Se deu com você. Do jeito que ele é aqui, também é no seu estabelecimento.
Após a despedida, Francisco Brandão
Magalhães com a esposa deixaram a festa para trás. Enquanto dirigia seu automóvel,
ele pensou no Onésimo, com pinta de sabido. Pensou na despedida, ao lhe apertar
com força o braço, a barrar-lhe a puxada da carteira de dinheiro. Pensou ainda no
Ernesto Ferreira, colega desde o ginásio em Fortaleza, ao convidar-lhe
insistente na Secretaria para irem à última noite de festejo a São
Francisco: “Vamos lá, Brandão. Você vai ver. Não há problema. Com essa
gente é só questão de paciência”.
JN. Dantas de Sousa