Todas as vezes que a sorte nos é
contrária afligimos. Foi essa antiga citação latina que padre José Felipe, após
suspirar pensativo na cadeira de balanço, atirou-a para as paredes da sala de
jantar da casa paroquial. A madrugada fria entrava pela janela, enquanto a
tristeza dominava-lhe a alma. Puxou do bolso da batina o terço, porém não se
animou para iniciá-lo. A cabeça doía. Permanecera acordado durante os últimos
dias, à cabeceira da irmã moribunda, até o seu último suspiro. Pobre padre José
Felipe. Atordoado na angústia da noite, sem ter com quem conversar, dirigiu-se
aos próprios sapatos pretos, ainda calçados nele, de bicos para o alto, sobre a
almofada do banquinho: “Errar é humano. Errar é humano”. Mas as duas badaladas
do relógio da Matriz de São José conduziram padre José Felipe a mais
lucubrações.
Pareceu ver a irmã falecida, Maria do
Perpétuo Socorro, a regular os dois ponteiros do relógio da sala de jantar.
Pareceu avistá-la sentada na cadeira de balanço, diante dele, lendo a revista
católica. Respirou fundo. Sentia o peso da idade. Sessenta e nove anos de vida,
ao se aproximar dos cinquenta sacerdotal. Acomodara-se com a irmã, na pacata
cidade caririense de Missão Velha. Viera administrar a Matriz de São José,
acompanhado da mãe e da irmã. Deus, que lhe havia levado o pai lá no Jardim,
também tirou dele a querida mãezinha. Por último, carregou daquela forma
inusitada a flor da família, sua mana Perpétua. A pneumonia ajudou a derribar a
irmã no túmulo. Ela se absorveu de constante aura angelical. Devota de Maria e
da caridade. Única distração consistia em visitar, durante folgas domésticas, a
casa de saúde do lugar. Duas vezes por semana e, aos domingos à tarde, confortava
doentes. Chamava-os de meus doentinhos. Aliviava-lhes o coração, ao ler e meditar
para eles as passagens bíblicas. Ela bastante rezava junto a eles.
- Alma querida de Deus - sussurrou
padre José Felipe, a remexer-se na cadeira.
Diante dele, permanecia a porta do
quarto de Perpétua entreaberta, e o cheiro de remédio ainda vindo do interior.
A imaginação pulou da cabeça para o quarto da falecida. Recordou a irmã deitada
em sua cama de solteira e de olhar a vagar no teto de gesso do quarto. Na
frieza da morte que se aproximava, ela apertava-lhe o braço direito, em
silêncio. Até que, finalmente, virando a cabeça no travesseiro, para fixar os
olhos azuis nos do irmão, implorou-lhe o perdão de Deus.
A fim de se aliviar da dor,
decidiu padre José Felipe rezar em seu próprio quarto, diante da Mãe de Jesus.
Ao dirigir-se devagar ao recinto, ele levantou a voz para a imagem no quadro:
"Os homens ignoram as causas de muitas coisas, minha Mãe".
Dentro do quarto, ajoelhado diante da
Virgem com o Filho em seu braço esquerdo, padre José Felipe não encontrou
sequer uma palavra para iniciar oração. Ainda parecia ver o espectro de
Perpétua sentada na cama ao receber a unção dos enfermos: de olheiras
acentuadas, a face pálida e os cabelos sobre a camisola branca. Aflito,
desorientado, extravasou-se em pensamento padre José Felipe, diante da imagem:
“Mas a mana, minha Mãe do Perpétuo Socorro, não teve nenhum auxílio”.
Sentou-se na cama, arrependido do
disparate. O quarto semiescuro fez recrudescer-lhe a tristeza. Deitou-se para
cantarolar a Virgem Imaculada, iluminada pela chama da vela sete-dias. A mancha
vermelho-azul, a sombra escura na parede, dialogavam diante dos olhos turvos do
vigário. Lembranças mais começaram a vagar no seu cérebro amodorrado.
No chegar daquela última noite de Perpétua,
ela fitava com melancolia, pela janela aberta do quarto, a cruz iluminada na
torre da Matriz. Adquiriu coragem para respirar fundo e lhe narrar como se deu a
sua última conversa com a irmã Cândida, na porta de saída do hospital: “Eu,
mano, perguntei para a irmã Cândida: Mas quem foi mesmo, irmã? E ela me
respondeu, de modo sério: Ninguém viu, amada Perpétua”.
Padre José Felipe levantou-se da cama
sobressaltado. Ajoelhou-se diante da Virgem. Traçou em si, devagar, o
sinal-da-cruz. Na semiescuridão do quarto, divisou a diretora do hospital, a
irmã Triesta, italiana sisuda, de rosto grave diante dele, na sacristia da
Matriz, após a missa, a lhe revelar o assassinato. Mas padre José Felipe já
estava sabendo da morte do adolescente. Sacristão Josué lhe revelara, antes da
missa, sem piscar os olhos, que alguém dera comida para o adolescente, enquanto
ele se achava sozinho no quarto do hospital. Acabou o rapazinho morrendo, mesmo
com todo o socorro dos médicos.
Já na casa paroquial para o
café-da-manhã, padre José Felipe narrou, de voz pausada, para Maria da Glória,
a sua empregada, a notícia do sacristão. E a empregada da casa paroquial lhe
completou: “A irmã Cândida, padre José Felipe, me disse que deram ao pobre rapaz,
às escondidas, uns docinhos. Ele comeu tanto que deixou. E ninguém viu quem
praticou o crime.”.
- Chega, chega, bradou para Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro padre José Felipe, sentando-se de vez na cama.
Debruçado, braços sobre a cabeça, recordou-se das últimas palavras da irmã: “Mano,
o menino era diabético. Eu não sabia disso. Lhe juro”. Nervoso, padre José Felipe extravasou:
- Como vou agir, minha Mãe de Jesus?
Inesperadamente, deixou padre José
Felipe o quarto, estremunhado, como se a mão de Deus lhe caísse na cabeça, a
esmagar-lhe o cérebro. Abriu a janela da sala de jantar, porém não se
interessou em ver o céu começando a azular. O silêncio, a dor no corpo, o
próprio mundo sacerdotal, tudo lhe inapetecia o gosto de viver. A velhice
quebrava-lhe restos de desejo, até lhe machucava a própria fé. Chorou mais. Teve
vontade de sair do mundo.
Mas sacristão Josué, começou a badalar
o sino da Matriz. Avisava a ele a missa das seis da manhã. Última segunda-feira
do mês mariano. Resolveu, pois, obedecer-lhe. Entretanto, no meio do caminho,
tropeçou na cadeira de balanço, balbuciando de sono: “Deus é o Senhor do mundo.
Seja feita a Sua Vontade”.
Finalmente dormiu padre
José Felipe um sono tão profundo e longo como a morte.
JN. Dantas de Sousa