Senhor das Almas (Dantas de Sousa) - conto

Era começo de noite de sexta-feira. O advogado Antônio Macário Gomes acabava de chegar ao terreiro de umbanda de Raimundo Baiano, no bairro Tiradentes. Havia combinado se encontrar com Raimundinha, uma filha de santo do Pai Raimundo, a qual dava início a um caso amoroso com o advogado. Doutor Macário nunca pisara em local de religiosidade afro. Mas o fogo da paixão carnal o esquentou para se encontrarem lá. Enquanto Raimundinha demorava a chegar, ele presenciou o surpreendente e incomum fato.

Naquela noite de sexta-feira, doutor Macário foi apresentado por um trabalhador do terreiro ao Raimundo Baiano, dono da casa de oração. Ele caiu na graça do Pai Raimundo. Entre uma conversa e outra, ouviu do dirigente da casa de oração a alvissareira explicação doutrinária: "Há muitos mistérios no mundo do além, caboclo, que a inteligência de muitos demora a entender os seus mistérios". E logo em seguida, para surpresa dele, Raimundo Baiano o convidou para conhecer a sua sala de consulta. 

Ao se sentar em seu birô diante de doutor Macário, o pai de santo recebeu uma ligação telefônica. Pediu-lhe licença para atender a ela. Assim, doutor Macário ficou à vontade para observar o local misterioso. Sem perder a atenção ao telefonema, passeou os olhos pelo lugar macabro. Afixados à parede, por detrás do pai de santo, dois quadros grandes: o de padre Cícero e o de frei Damião, arrodeados de folhas e flores de plástico. Ao seu lado esquerdo, a estampa da preta velha, sentada no terreiro, diante da choupana, enquanto fumava cachimbo. Aos pés da negra, estava escrito: Tia Rosa. Também havia outra estampa: de um preto-velho, cujo nome era Pai João. Distribuídas pelo chão, velas de cores variadas e estátuas e objetos que ele não os diferenciava. 

De repente, Raimundo Baiano, com a mão esquerda tapando o fone e com a outra mão a empurrar o caderno e a caneta em sua  direção, ordenou-lhe: “Anote aí, caboclo. Escreva aí, escreva aí: Zé-pelé”. E enquanto doutor Macário escrevia, completou Raimundo Baiano, ao pôr o fone no gancho e depois de soltar alta e fina gargalhada: “Esse daí, caboclo, esse daí é o nosso mais novo finado”. 

De imediato, doutor Macário sentiu o corpo tremer. Ao mesmo tempo, aumentou nele a vontade de sair depressa daquele local constrangedor. Mas buscou olhar letra por letra, como se visse na imaginação o defunto. E atentou-se ao que Raimundo Baiano o declarou enquanto mexia, na peneira de palha, as conchas: “Aqui é assim, caboclo. Foi mais um trabalhim nosso. Terminou dando certo. Agora, caboclo, só falta eu receber a bandeira pra depois agradecer os bons guerreiros do além”.

Diante da cena grotesca, viu-se o advogado hipnotizado da cabeça aos pés. De cabeça baixa e olhos pregados no papel, relembrou-se de uma pintura que havia visto numa igreja: um homem sendo consumido pelas chamas do inferno. 

Ao vê-lo disperso, Raimundo Baiano agarrou-lhe o braço esquerdo e o advertiu: "Quem tiver fé de verdade, caboclo, sai vencedor". Bem rápido, continuou a sua preleção ao lhe revelar o que sempre dizia aos seus consulentes: o pensamento é de quem contrata, mas o trabalho é de quem faz. Para enfatizar o que lhe dissera, mostrou-lhe ser o senhor das almas: "Com nossos guerreiros, caboclo, ninguém brinca. Se brincar, se lasca. Quem me contrata tem que ter a prova. Eu ordeno nossos guerreiros do além irem no rastro da vítima, e eu empurro ele pro fogo eterno. Lá no além, as almas guerreiras e eu aqui tiramos o desgraçado do meio das pessoas de bem".

De tão empolgado, Raimundo Baiano não deixou doutor Macário especular sobre o que ocorrera. Apressado, contou-lhe que um amigo de fé, empresário rico no ramo de madeira, havia se deparado num bar próximo de sua fábrica com Zé-pelé. No instante em que o empresário, após comprar a carteira de cigarros no bar, demorou-se para beber o cafezinho, o finado Zé-pelé se aproximou dele e lhe pediu meiota de cachaça. Mas, ao receber o não, o vagabundo passou a agredi-lo com palavras de baixo escalão. Não se contentando, ameaçou-o de se vingar do empresário. 

A partir daí foi que o Raimundo Baiano entrou em cena. Para não sujar as próprias mãos, ou para não contratar pistoleiro, o empresário decidiu contratar o serviço espiritual do famoso pai de santo, que já havia lhe realizado alguns trabalhos. Pois foi naquele mesmo bar, onde o vagabundo ameaçara o empresário, que se concluiu o garantido trabalho de Raimundo Baiano. Pouco mais de dois meses, Zé-pelé foi assassinado. 

Às três horas da tarde, enquanto Zé-pelé jogava baralho com três amigos, na calçada do bar, a própria amante dele se aproximou por trás e, inesperadamente, enfiou sobre o pulmão esquerdo de Zé-pelé o punhal até o cabo. E o pai-de-santo, naquele instante de exaltação, regozijou-se, batendo com força palmas e, em seguida, esmurrou as duas mãos no birô. 

Ao assistir à macabra alegria de Raimundo Baiano, doutor Macário trancou os olhos e se perdeu em confusão mental. Ainda bem que, pela graça de Deus, alguém bateu com força por três vezes à porta da sala de Raimundo Baiano. 

A mandado do pai-de-santo, doutor Macário abriu a porta. Diante dele, o sorridente homem trazia no pescoço o cordão grosso de ouro, com a estrela de seis pontas a brilhar no peito cabeludo. Ao bater efusivas palmas para o senhor, Raimundo Baiano explodiu com força sua alegria: "Olha aqui ele, caboclo, meu grande empresário que contratou meu serviço". 

Nem pensou duas vezes doutor Macário: deixou os dois a se abraçarem e saíu ligeiro porta afora. Atravessou o pátio do terreiro de Raimundo Baiano às pressas. Já na rua, começou a abrir o carro, nervoso de corpo e alma. O doutor buscava escapulir do horrível lugar. Só que, antes de ligar seu carro, ouviu nítidamente Raimundo Baiano a bradar: “Agora, amigo Expedito, você pode dizer, com segurança, que Raimundo Baiano é o senhor das Almas".

JN. Dantas de Sousa

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