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Tomando dos outros (Dantas de Sousa) - conto

Enquanto o empresário, crediarista de panelas e outros objetos de alumínio para cozinha, Olavo Miranda aguardava o mecânico Andorinha consertar uma de suas camionetas de viajar a negócio para a região norte do Brasil, ele avistou aquela figura esquálida a se arrastar com dificuldade de uma calçada a outra da rua. Sentiu vontade de perguntar a Abraão, o dono da oficina, quem era aquele maluco. Mas desviou o olhar e voltou a refletir sobre o que sua esposa alertava a ele: Abraão lhe agradava com falsos elogios a fim de lhe dar a facada no bolso. Aliás, vez por outra, ela afirmava ser Abraão desonesto. No entender dela, o dono da oficina era um protestante que se gabava de nunca ter passado a perna em seus clientes.      

No entanto, Olavo trocou sua reflexão pela fala de Abraão, a mexer no motor do fiat uno: “Existe gente, Seu Olavo, que não quer trabalhar. Começa e nem chega a três meses de experiência”. Apontando com a chave de fenda para a porta da rua, Abraão alertou a Olavo: “Taí um, nas costas do senhor, o Tião. Dou um conselho ao senhor: deixe Tião de lado e não dê esmola a ele não”.

Ao se virar para trás, o comerciante observou Tião encostado no portão de entrada da oficina, de olhos vermelhos. A primeira reação de Olavo foi observá-lo: cabelo emaranhado, só couro e osso, a roupa suja e amarrotada. Portava na mão o pau roliço, como cassetete. Forçava para expulsar o ar de dentro dos pulmões. E, mais uma vez, Abraão, deitado embaixo do fiat uno, alertou: “Não dê trela pro Tião, Seu Olavo".

Em silêncio, Tião se encostou a uma coluna de madeira, a qual segurava o telhado da oficina. Pouco depois, foi buscar um banquinho e se sentou junto da mesma coluna. Demorou os olhos nos sapatos e na roupa de Olavo. De súbito, estirando a mão, pediu-lhe esmola. Mas Abraão, saindo debaixo do carro, repreendeu-lhe: "Tião, tem não. Vá andando, ou se quiete”.

Tião olhou para Olavo de cima a baixo e, depois, parou os olhos no celular em sua mão. Sorriu para o empresário e balançou a cabeça, como reprovasse Abraão. Mas outra vez o dono da oficina, a coçar as costas com a chave de fenda, antecipou-se: "Tião não quer trabalhar, Seu Olavo. Um vida boa, só na esmola".

Mais uma vez Olavo voltou os olhos para Tião, que riscava algo na areia, com o dedo indicador. E Abraão continuou: “Seu Olavo, eu dou um bruto danado, me levanto na cantiga do galo. Antes de sair de casa, deixo pão, café, pra mulher e meninada. Aí, pego meu chevette velho pra vir trabalhar. Fosse outro, tinha entrado na vida boa desse aí”.

Vendo Tião não dar o troco para Abraão, o mecânico, abaixo do capuz da camioneta, parou o trabalho e mexeu com o indigente: “Tião, me diga: tu nunca pegou de vera no pesado? Só na boemia tempo todo?”. Também Olavo pretendeu especular a via de Tião. Mas mudou de ideia e retirou do bolso o maço de cigarros, oferecendo-lhe um. Os olhos do mendigo correram mais ligeiros do que seus dedos. Exaltou-se: “Cigarro de rico”.

Sem se importar com advertências anteriores de Abraão, o empresário esperou Tião se levantar para receber três cigarros. Ainda acendeu o de Tião. Para completar a desobediência, atentou-se para Tião, sentado no banquinho, de pernas cruzadas: “Não é de hoje, doutor, que ando a pedir esmola. Humilhação muita. Peguei no pesado, sem garantia de nada. Vivia com mão na frente e outra atrás. Aí pensei: só tomando dos outros”.     

- E por que tu te meteu nessa vida, cara? - intrometeu-se o mecânico da camioneta. - Nunca pensou em Deus não?

- Pensei, respondeu-lhe Tião, a olhar para Olavo. Calou-se para tragar o cigarro. Depois de jogar fumaça para o céu, bateu no peito para falar: “Doutor, apanhei feito cachorro. Emprego que peguei, eu ficava só bagaço de tanto moído. Quem quer sujeito magro e parecendo um bicho. Vou confessar pro doutor: comecei tomar dos outros por revolta”.

- Esse papo, Tião, já tá manjado - discordou dele o mecânico ao se levantar num pulo. E continuou: - Todo mundo que pega no alheio fala a mesma coisa, Tião. Deus quer a gente no trabalho. Está na Bíblia, né Seu Abraão?

Consertando ainda o fiat uno, Abraão, sem levantar o rosto, gritou eufórico: “Muito bem, meu irmão. Aleluia!”. Já Tião buscou dar a Olavo mais explicações: “Doutor, criatura que nem eu, só vê confusão, desgosto. Desde pequeno, em casa, era briga. Meu pai deixou nós pequenos. Meu irmão mais velho morreu de tiro. Minha irmã fugiu de casa. Um homem que vivia com mãe tornou minha irmã mulher. Tanta raiva tive dele que matei ele de peixeira. Aí mãe, com raiva, me jogou de casa pra fora, nos meus doze anos”.

Ao ouvir isso, o mecânico arregalou os olhos para Tião. Mas no olhar sério de Abraão, voltou a trabalhar. E Tião arrastou mais palavras: "Aí, doutor, fui preso nos menores. Mas fugi de lá e me soltei no mundo. Aprendi a tomar dos outros. Aprendi que as coisas boas são também pros que não têm”.

- Tu devia ter se ajeitado. - Intrometeu-se mais uma vez o mecânico, apontando com a chave de roda para Tião. - Por que não foi dar duro, como eu aqui todo suado? Se entregue a Jesus, Tião.

Tião não respondeu ao rapaz, uma vez que apareceu no portão o policial fardado. Humilde, o mendigo abaixou a cabeça. Mas ficou espiando o revólver na cintura da autoridade. Só depois que o policial atravessou a rua, Tião dirigiu-se a Olavo: “Naquele tempo, doutor, eu me juntei com os do meu tope. Me botaram apelido de Pitoco, por causa do meu tamanho. Já tive bocado de apelido. Não nego: peguei em bocado de dinheiro. Nada em mim era honesto. Eu pensava: por que não podia eu ter o que os outros podiam ter? Eu tinha que ter. Aí, tomava dos ricos o dinheiro e o que mais ele tivesse”. 

Levantou-se Olavo para observar de perto o trabalho do seu mecânico, sem deixar de ouvir Tião a falar em voz alta, gastando o terceiro cigarro: “A gente fazia assim, doutor: ficava encostado na esquina como quem não queria nada, só escolhendo a presa. Aí zapt! Depois, só ouvia a gritaria de pega-ladrão, até se desaparecer do ouvido. Quando os policiais pegavam um, batia no espinhaço, chega mais se revoltava. Me lembro duma vez ter matado um de farda. Dei dois tiros só pra ele se ir de vez”.

Olavo se agoniou com a fria declaração de Tião. Fez gesto com a cabeça para Abraão, a lhe mostrar não gostar de ouvir aquilo. Ao vê-lo incomodado, o dono da oficina, saindo do seu chevette, repreendeu Olavo: “O senhor é teimoso. Pedi pro senhor não agradar a Tião. Ainda tolero porque já trabalhou aqui. Saiu, voltou. Saiu, voltou. Me abusei dele. Dizia que ganhava pouco. Mas está vendo? Não devia ter dado cigarro”. 

Para refrescar a cabeça, Olavo decidiu acender mais um cigarro. Ainda entregou outro ao mendigo, que o acendeu com o próprio fósforo. Em seguida, afastou-se de Tião e escolheu a cadeira de plástico para se sentar. Só que ficou paciente a ouvir mais o desabafo de Tião: “Tudo que disse, doutor, é pura verdade. Hoje, deixei das estripulias. De tanto trabalhar, levei chute na bunda. Pode ter certeza, doutor: agora mesmo tem gente roubando. Os de anel tem mais tino, sabe botar a mão na loca. Doutor, a planta nasce e cresce torta, por culpa de quem?”. E o mecânico da camioneta se adiantou: “Eu sei. Eu sei”.

Não gostando da intromissão do metido rapaz, Tião puxou a tragada, jogou fumaça para o telhado e se esforçou na voz: “Você é criança, rapaz. A sua vida vai ser igual a minha”. E se dirigindo a Olavo, ele se explicou: “Trabalhei de mecânico aqui, doutor. Um tempão. E digo: tem gente de bíblia, mas é tomando dos outros”.

Voltando-se para o mecânico, Tião anunciou: “Tu, cara, tu vai ficar que nem eu. Sua tripa vai roncar, sua cabeça vai rodar, mas sem um centavo no bolso. Aí vem o pé na bunda. E tu sem carteira assinada”. Desconcertado, o mecânico do empresário crediarista procurou palavras: “Mas tu nunca teve filho?”.

- Tive sim, uma filha. Mora mais eu, desde a morte da mulher. Faz as vezes de esposa, ajeita a casa, faz meu comer. Mas quem mexer nela, eu arranco o fato do desgraçado.

- Pare com essa valentia, Tião - gritou para ele Abraão, de lá do escritório. - Viva em paz. Se entregue a Jesus. 

Tião entrou no silêncio. Ao vê-lo mansinho, cabeça baixa, Olavo o chamou. Entregou-lhe trinta reais. Ao presenciar a ação do seu freguês, Abraão aconselhou Olavo se regrar na caridade, sobretudo com quem é do tipo de Tião.

Ainda, Abraão, com sorriso de ironia, elogiou Olavo, ao ponto de exagerar a grande quantia depositada na conta bancária do freguês. E não se esqueceu de convidá-lo a se encontrar com Jesus lá na sua igreja protestante. 

JN. Dantas de Sousa

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