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O eremita (Dantas de Sousa) - conto

De quando em quando, a professora Maria das Graças Fortunato Feitosa, solteira e aposentada, telefonava para o sobrinho Pedro Fortunato Cardoso, o enfermeiro Cardozim. Ao final da ligação, a tia cobrava dele uma visita à chácara. Aliás, era mania dela telefonar para amigo ou amiga e, antes de desligar o telefone, insistir-lhe saborear guloseimas da Severina de Jesus, cabocla idosa e solteirona, a qual morava com Maria das Graças há anos. E foi justamente por causa desse telefonema, segundo ela de extrema urgência, que Cardozim foi visitá-la rápido. 
Estavam em ano bom de inverno caririense. A chácara espaçosa, próxima a Barbalha, apresentava-se úmida e com muitas folhas de mangueira pelo chão. Enquanto degustavam, na varanda da frente, tapioca de coco com café, além de gostosíssimos sequilhos e pães de queijo, Maria das Graças avisou a Cardozim de um sonho esquisito que tivera na noite anterior. Era outra mania da tia contar sonho e esperar do visitante a interpretação.
Somente após o lanche, a arrotar de instante a instante, Maria das Graças de frente para o sobrinho na cadeira de balanço, a entrelaçar dedos de cada mão, ela narrou-lhe o sonho com frases de suspense. Segundo a tia, diante do personagem, velho baixinho, acaboclado, de cabelo branco e longo, ele lhe expusera que tentava falar com um amigo ainda vivo. E ela concluiu o sonho assim: "Sabe quem era o amigo? Você. Ouvi claramente o ancião no sonho dizer seu nome, Cardozim".
Por pouco Cardozim desmaiou de medo, de susto, de bater a cabeça no chão de cimento amassado. No instante, agarrado aos dois braços da cadeira, ele gemeu ser invenção, ou uma brincadeira, da tia Maria das Graças. Rápido, Cardozim lhe especulou algo sobre o ancião. Ela, bem ligeira, observou-lhe ter se acordada assustada.
Ainda surpreso com a tal história de Maria das Graças, o enfermeiro Cardozim chegou a ver a figura e a imagem de José Cícero Pereira, ex-empregado do pai, o qual havia morrido há cerca de vinte e poucos anos.
No entanto, para não encompridar conversa, Cardozim desconversou-a. Para ele, sonho era negócio para sonhadores. Tolice de muitos para jogar no bicho. Mas se a tia quisesse missa para a alma do falecido servia para ele não a importunar.
Mudou mais Cardozim a conversa. Botou a tia em dia, com as novidades em Juazeiro do Norte. E bem antes de escurecer, despediu-se de Maria das Graças, pedindo-lhe a bênção. Ainda bem que a tia se esquecera na despedida do tal sonho. E Cardozim saiu devagar da chácara, dirigindo seu carro debaixo de chuva.
Durante o retorno de Cardozim para sua casa, conduzia o veículo de modo lento, devido ao aguaceiro, porém velho Zé Cícero se grudou no seu cérebro. Com nitidez, Cardozim reviu a cena de adolescência, ao ir ao local ermo da Chapada do Araripe, onde o ancião morava. Ia a cavalo. Por lá carro quase não conseguia chegar. A mãe de Cardozim, por sua vez, mandava o filho levar mantimentos para o velho Zé Cícero, de quinze em quinze dias.
Realmente, Cardozim gostava de ir àquele lugar esquisito, onde não havia companhia humana, e mais sons de pássaros e de aves durante o dia; e de sapo, galo, gato e cachorro, durante a noite. Também andava por lá para prosear com o eremita, além de se deliciar de bons momentos na Chapada do Araripe.
Uma vez, o ancião chegou a lhe pedir uma tesoura, para cortar o cabelo e as unhas. Mas, todas às vezes, ele lhe exigia o querosene para passar no corpo, a fim de repelir os insetos que o perturbavam durante a noite.
Mas Cardozim não entendia ao se aproximar da casa de Zé Cícero. Construída de taipa e barro, três metros de frente, três de fundo e apenas uma porta. Sentia-se envolvido por uma aura de misticismo e crendice, os quais povoavam o imaginário do rapaz. Logo que empurrava a porta, avistava detrás dele duas companhias: o quadro de padre Cícero e o de São Francisco das Chagas, afixados na parede de barro. Depois, deparava-se com o corpo do eremita do lado direito de quem entrava, já sentado na cama feita de varas, tendo sobre ela o colchão de palhas, coberto por um pano sujo. Sobre dois engradados de bebida, havia poucas panelas de barro, algumas latas de leite em pó, que serviam de caneco. Pendurados na parede lateral, trapos de pano e o facão. E perto da cama havia diversas varas, que serviam para ajudar o ancião a se locomover. 
- Você de novo, meu amigo? - resmungava Zé Cícero ao ver Cardozim entrar. Após pausa, completava: - Um dia a morte vem me buscar, e você só vai encontrar um velho fedorento, de olho grelado.
Ao ouvir a mesma tirada de sempre, Cardozim brincava com ele, dizendo-lhe que ainda viria muitas vezes, para ouvir sua conversa. Ao que ele o retrucava, chamando a atenção para seus oitenta anos, apesar de ele nunca ter tirado documento.
Enquanto Zé Cícero trabalhou na moagem do engenho do pai de Cardozim, no município de Porteiras, no Cariri sul-cearense, sempre o rapaz insistia para não ter documentos. Mesmo através de ordem judicial, obrigando-lhe documentos, ainda assim ele se recusava. Nem queria ouvir falar de aposentadoria.
Após fechamento do engenho, Zé Cícero se afastou para aquele local ermo em cima da Chapada do Araripe. Resolveu se isolar do mundo. Apegou-se àquela vida sem se preocupar com dia de semana, nem com ano e tempo passado. Não gostava de tomar banho nem de trocar de roupa. Alimentava-se do que algumas pessoas lhe davam, como a mãe de Cardozim lhe enviava.
Certa vez, quando Cardozim abriu a porta do casebre com um pontapé, Zé Cícero se desabafou: “Essa gente vive me paparicando. Quer me matar de tanta comida. Deviam cuidar da vida deles, que já cuido de mim”. E quando a cabeça apertava, a zanga aumentava, até Cardozim entrava na peia de língua: “Se continuar com besteira de me bajular, vou subir de serra acima e mais ninguém vai me achar”.
Apesar daquela vida isolada, Zé Cícero vez por outra lhe falava coisas íntimas. Num dia de junho, depois de comentar com ele sobre a festa joanina a se aproximar, o eremita lhe revelou um pouco do seu tempo de mocidade. Andara em festas, chegando a tomar bebida de bodega. Quando o seu amigo lhe perguntou de onde ele era e por onde andava seus familiares, Zé Cícero parou de comer o pão, guardando-o no meio dos panos. Olhou para Cardozim sério, apoiando as costas na parede de barro, para declarar: "Minha família, meu amigo, é o mundo".
Entretanto, naquele mesmo dia, Zé Cícero abriu pedacinho de sua vida. Ao ouvi-lo atento, Cardosim se esqueceu do tempo. Quando deu por si, apressou-se para partir. Apesar da insistência do eremita, a querer que dormisse por lá, não aceitou. Ainda bem que a noite estava em lua cheia. 
Ao chegar a casa dele, havia um deus-nos-acuda. A mãe mandou a turma de gente procurar o filho. Já o pai, ao ver o filho tranquilo e saudável, somente o repreendeu, avisando a Cardozim que ele não mais iria se dirigir àquele local deserto e perigoso.
Demorou um tempão Cardozim dormir, uma vez que as lembranças de Zé Cícero ecoavam dentro dele: depois da morte dos pais, deixou de trabalhar para viver na rua. Dos três irmãos, era como se não os tivesse. Mesmo a viver sem eito nem beira, cresceu consciente de que não existia amigo, porém companheiro de estrada. Trabalhou como burro de carga, não estudou nem teve profissão. Apesar dos apertos, nunca roubou nem uma agulha de ninguém. 
Nesse mesmo dia de junho, antes de encerrar a conversa, Zé Cícero se desabafou: “Resolvi seguir minha solidão. Ela me acompanha desde criança. Me desiludi do mundo. Por isso nunca quis namoro nem casamento”.
Após o acesso de tosse, ele botou força na voz: “Nunca fiz negócio de homem com mulher, nem de homem com homem. Nem sozinho, nem com os de quatro pernas. Hoje sou virgem, igual a padre Cícero Romão”. 
Quinze dias depois da última visita, Cardozim se dirigiu à casa de Zé Cícero, às escondidas. Encontrou a porta da casa trancada. Chamou que chamou por ele. Nervoso e agoniado, jogou a porta ao chão. Na mísera cama, Zé Cícero fedia demais. Antes de fazer uma oração pela alma dele, ouviu a voz rouca do eremita ao vê-lo chegar: "Você de novo. Um dia a morte vem me buscar e você só vai encontrar um velho fedorento, de olho grelado”.

JN. Dantas de Sousa

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