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Pânico em Mariquinha (Dantas de Sousa) - conto

Mariquinha Filipe Gonçalves, costureira de roupas de mulheres e crianças, conhecida em Juazeiro do Norte como Mariquinha-costureira, era tida como uma mulher alegre, cheia de vida e disposta. Ao morar com os pais, ela trabalhava sem se importar com a hora. Não lhe faltavam freguesas na sala de visitas. A porta de entrada e as duas janelas permaneciam abertas durante o dia e só eram fechadas tarde da noite. Na calçada da casa, havia o benjamim sempre verde, de copa arredondada, de caule grosso, em que se dava para ouvir conversas fugidias. 

A elogiada costureira possuía no caderno de anotação nomes de freguesas de Juazeiro do Norte e de locais caririenses. Ao se dedicar à profissão, Mariquinha não se casou nem quis namorado ou amor abafado. Maior parte do tempo diante da máquina de costura servia para ajudar o pai, a mãe e a educação escolar dos dois irmãos. Ajudou até na costura da roupa de casamento dos dois e das suas esposas. 

Era de família católica romana. A mesa onde era posto o oratório de madeira lhe trazia elogios. Acima dela, o quadro do Coração de Jesus e do Coração de Maria, iluminados dia e noite pela luzinha vermelha, pertenciam aos pais de Mariquinha e transmitiam respeito e admiração. No dia 13 de dezembro, dia de Santa Luzia, ocorria a Renovação do Coração de Jesus e de Maria. Pintava-se a casa para a noite da reza. Preparavam comidas e bebidas para o café do santo. Apesar de poucos convidados, no dia treze recebiam convidados e aumentavam os não-convidados.

Sem alongar-se em inesquecíveis lembranças, tornou-se difícil para o adolescente Ricardo Lima Leite ir para Recife, a fim de prestar vestibular para Medicina e, após, o ingresso na Universidade Federal de Pernambuco. Quanta saudade de Mariquinha! No entanto, o consolo dele se assegurava nos pais residirem em frente à casa de Mariquinha.

Até que o tempo se encarregou de distanciá-lo da costureira e da Rua São Francisco. Seus pais aposentados foram residir em chácara própria, perto do município de Barbalha. E após três anos formado em ginecologia, doutor Roberto Lima apoiado pela esposa recifense Laura, psicóloga, retornaram para Juazeiro do Norte. Dois filhos adolescentes vieram com eles. Comprou o casal a casa próxima à chácara dos pais do doutor. 

A rapidez do tempo assustou o médico. Vinte anos a morar e trabalhar em Juazeiro do Norte. Os dois filhos, formados e casados, a trabalharem. Contudo algo afogava Roberto Lima em tristeza, devido à pandemia chinesa, isto é, o covid-19. Angustiosas notícias de morte corriam pelo mundo. Conhecidos, parentes, se foram sem volta. O mundo "sapiens" se transfigurava em mundo desgarrado da alegria de viver. 

Certo dia, doutor Roberto Lima se lembrou daqueles moradores da Rua São Francisco. Veio-lhe logo à mente a Mariquinha-costureira. Desde que retornara de Recife, pensou em visitar Mariquinha e seus pais. No entanto, um amigo de infância lhe revelou ter a costureira se mudado com os pais para um sítio próximo ao município de Caririaçu. 

Antes de receber a última cliente em seu consultório, doutor Roberto Leite refletiu de modo triste sobre Mariquinha. Olhou para o calendário sobre a mesa: 22 de janeiro de 2021. Desabafou consigo: “Como somos míopes para avistar as sutilezas da vida”. E sinalizou para a secretária mandar entrar a última cliente do dia. O relógio de parede marcava 17h e 40min.

Após o término da consulta, a senhora idosa, acompanhada da filha casada, puxou conversa com o ginecologista. Doutor Roberto Lima até achou bom ouvi-la, já que encerrava o cansativo expediente. Dona Jovita, portanto, sem se importar com a tristeza da pandemia, falou-lhe a sorrir a respeito da mulher, perto de seu sítio, que entrara em pânico.

Antes de ela relatar sobre a mulher, antecipou ao médico ser ela solteirona, alegre, trabalhadora, porém aposentada. Conhecida como Mariquinha ou Mariquinha-costureira.

No instante clareou nitidamente no ginecologista a figura de Mariquinha-costureira. Depressa agarrou-se nele à curiosidade, e ele lhe pediu para contar o pânico da tal mulher. 

A senhora abriu sorriso largo e a notícia. Explicou a ele que Mariquinha vivia aposentada. Após a morte dos pais, acompanhava-se da prima solteira e da idosa que tomava de conta dos afazeres da casa. Mas ninguém poderia esperar que a mulher se assombrasse com a covid-19. Botou ela na cabeça de uma hora para outra. Entrou em pânico. Internou-se no seu quarto de dormir. Abasteceu-se de gel, álcool, sabão, sabonete, máscara, comida, remédios. Levou o televisor para o quarto de dormir, a fim de acompanhar as notícias sensacionalistas do vírus chinês, matador de milhões de pessoas no mundo inteiro. 

A porta do quarto de Mariquinha ficava trancada dia e noite. Para se alimentar, a empregada da casa lhe trazia a alimentação até a porta, e Mariquinha abria a porta um pouco. Pela brecha da porta, ela ordenava pôr a comida no único prato. Assim também agia com a água de beber, na única jarra. Também ela colocou o fogão pequeno, para poder fazer café ou chá, além do liquidificador. Contudo, as duas mulheres da casa não conseguiram retirar de Mariquinha os exageros. 

Ao ser reclamada, advertia as duas se afastar uma da outra, não deixar a máscara, se abastecer de vitamina C + zinco, usar gel nas mãos, lavar as mãos com sabão e ficar em casa. Além de se cuidarem para não se contaminar com o povo da rua. Mariquinha assistia às reportagens da tevê, mandava observar o tanto de gente contaminado e o "ranking" dos países com mais morte.

As duas mulheres contrariaram-se com Mariquinha. Aos poucos, notaram que ela não se comunicava como antes. Dentro do quarto de Mariquinha, passaram a ouvir o som alto da tevê. Depois, desconfiaram a perceber o resto das comidas que Mariquinha devolvia e a voz dela quase inaudível. Antes de completar terceira semana do seu enclausuramento, temerem a morte de Mariquinha. Decidiram, então, chamar um médico. 

Veio à casa de Mariquinha a equipe de pessoas da saúde, já preparados para o que desse e viesse. Abriram a porta à força. Depararam-se com ela deitada na cama, cabelos desarrumados, pálida, olhos fundos e arregalados. Batia com os lábios, ou melhor, murmurava baixo. Agarrada ao travesseiro, ela se tremia. Logo o médico deu ordens para três enfermeiros e o motorista ajeitassem-na para levá-la ao hospital. Rápido, saíram de porta afora com Mariquinha. Colocaram-na na ambulância e partiram. 

Foi a última vez que as duas mulheres da casa viram Mariquinha. Ela morreu no hospital, quatro dias depois de ser entubada. 

JN. Dantas de Sousa 

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