Seis e meia da manhã, terceira
sexta-feira de maio. Na sala da frente da casa de Dona Lu, já havia algumas
pessoas sentadas, a fim de se consultar. Todo santo dia havia gente por lá. A
casa pequena, estreita, de porta e janela, pendurava-se na ladeira de calçamento
de pedra na Rua do Horto, em Juazeiro do Norte.
Na sala da frente, destacava-se a mesa
com toalha de renda branca. Sobre ela, a cruz de madeira, de metro e meio, com Jesus
crucificado envolto em fitas de pano de várias cores. A estátua de Nossa
Senhora das Dores, padroeira de Juazeiro do Norte, com seu coração perfurado
por sete espadas, permanecia ao lado esquerdo do Seu filho agonizante na cruz. E
para completar a decoração da mesinha, uma vela branca sete-dias acesa e o jarro
de três rosas de pano vermelho.
Do lado direito da mesa, afixavam-se na
parede amarela doze quadros de santos da Igreja Católica. Já do lado esquerdo
da mesinha, havia o vão de porta de onde se avistava, lá dentro da casa, a
anciã sentada a fumar cachimbo e Dona Lu a rezar numa moça. Mas o silêncio da sala da frente foi interrompido
pela mulher de olhos vermelhos e arregalados, do lado de fora da janela da sala
a gritar com desespero: "Dona Lu, a senhora pode passar um raminho no meu
marido, Expedito? O negócio dele é muito sério, Dona Lu. Não dá pra adiar não,
dona Lu".
Sete pessoas, sentadas à espera de
serem atendidas, se assustaram. A mulher da vez, de bermuda florida, blusa
mostrando os seios, negou-lhe de pronto a intromissão, com o incisivo “de
jeito nenhum”. Ela logo foi apoiada pelo homem moreno, de boné vermelho; por
duas romeiras de chapéus de palha à cabeça, blusas de malha branca e, sobre
elas, a pintura da igreja de Serra Talhada, no Pernambuco; de duas mulheres com
sacolas plásticas entre as pernas e a avisar que iria pegar a topique para Cajazeiras,
na Paraíba, antes do meio-dia. Só a mocinha, ouvindo o fone de ouvido, levantou
o dedo polegar, acatando-a. Entretanto a intrusa não aceitou a negativa do
pessoal da sala e insistiu mais desaforada: “É muito sério, gente. Expedito com mais de mês nem come nem dorme.
Foi caboje botado nele. Só me diz que foi a cachorra de uma rapariga...”.
- Epa, epa, epa. Assim, não atendo -
levantou a voz Dona Lu.
A casa retornou ao sossego. Dona Lu
voltou a passar o ramo de pinhão-roxo sobre a moça sentada de mãos abertas para
cima. Rezava agora alto: "Dor, abrando tua ira e quebro tuas
forças. Mesmo que Judas vendeu Cristo, que é Nosso Senhor Jesus,
e que pelo mundo andou, olhado e vento caído Jesus curou”. Repetiu
a oração. Ao término, Dona Lu jogou o ramo pela porta da cozinha, para o
terreiro. Por fim, benzeu a moça por três vezes, avisando a ela, já na porta da
sala da frente, para voltar nas próximas três sextas-feiras.
No entanto, nem bem a moça da consulta
atravessou o vão de porta, a mulher arrastou Expedito pela manga comprida da
camisa e se enfiou pela casa. Insistiu a Dona Lu que só iria sair da casa dela
quando visse o marido são e salvo. Tinha vindo do inferno-da-pedra, puxando
pela asa o abobalhado, todo enlambuzado de macumba, jogada nele pela cachorra
de uma rapariga...
- Epa, epa, epa. Assim não atendo. Quer
atropelar o povo e a mim também?
A mulher se disparou em latomia, com o dedo
indicador para o marido. Desabafou-se para a rezadeira que estava a sofrer como
nunca, seis filhos no cangote, sem um pingo de água no pote de casa. Vivia com
Expedito há trinta e dois anos, e o marido era tão disposto, cheio de vida. Mas
ficou leseira e não servia para nada, nem mais para aquilo.
- Peraí, minha filha, pare dessa
latomia, pelo amor do Santo Cristo.
Com palavras brandas, valendo-se de
padre Cícero, de Jesus e de Nossa Senhora das Dores, Dona Lu procurou consolar
os seus clientes, sentados dóceis na mesma ordem dos lugares. Contudo, antes de
atender ao Expedito, a rezadeira fez a sua pregação.
Segurando-se nas palavras, dona Lu mostrou
aos da sala o quanto já trabalhara depois que recebeu a obrigação. Curou
viciado na cachaça, na droga e no jogo. Fez ajuntamento de casal. Só Deus sabia
do seu sofrimento. Tinha dia que não aguentava. Estava pagando todos os
seus pecados.
Os pecados a que Dona Lu se referia eram
o de não ter salvado o único filho, que morrera antes de completar um ano de
idade Além de haver perdido o marido, que arranjara outra e se bandeou pelo
mundo. Ficou só com a mãe idosa, quase cega. Por fim, confessou que seguia vinte e sete linhas de trabalho. Mas a penitência já estava
por um fio para se acabar.
O povo da Rua do Horto já se acostumara
com a história de Dona Lu de estar chegando ao fim de atender o povo. Cada
vez mais ela era procurada. Seu verdadeiro nome pouca gente sabia: Maria de
Lourdes dos Santos Oliveira. Mas o que se sabia mais era ver a casa de Dona Lu
sempre entupida de sofredores.
Ela só atendia de dia porque, segundo
ela, não servia reza nenhuma com plantas coletadas durante a noite. Também só
rezava de vestido branco e, sobre ele, a cruz de madeira e a corrente de prata
com as medalhas do padre Cícero e da Mãe das Dores. Com a mãe, ela
aprendera as rezas, mas havia algumas que ela mesma criava na hora, dependendo
da situação. E mais uma vez apresentou a confissão: "Tem uma voz que me
diz como devo trabalhar. Mas minha mãe me ajuda quando a doença é da braba, ou
quando o espírito é muito pesado".
Ainda Dona Lu pregou aos na sala ter
visto muitos que vieram à sua casa gemendo de tanta dor pelo corpo, para depois
saírem satisfeitos com o seu trabalho. Ela não tinha o costume de cobrar pela
reza, porém pedia ao povo que lhe desse de acordo com as suas posses, ou
alimentos para o sustento e para distribuir aos de necessidade. Num gesto
raro, exibiu aos presentes o álbum de fotografias, que o retirara da gaveta na
mesa do oratório, na sala da frente. Ao folheá-lo, pediu a atenção de todos
para a moça de Cabrobó, no Pernambuco, que ficara boa da vista. Também para o
idoso de Acopiara, que se livrara duma ferida braba. Havia ainda no álbum
vários retratos de pessoas de outras cidades do Cariri, as quais, segundo ela,
também receberam ajuda espiritual por meio dela. E terminou a sua pregação
assim: "Quando coloco a cruz na mão, se a criatura tiver fé em Deus e
Jesus, vejo tudo. Por isso, quem vem aqui traga uma saca de fé. Meu trabalho
espiritual tem que ter duas coisas: a cruz e a paciência de Nosso Senhor. Quem
não quiser me ouvir o que digo, que se arretire deste
meu quixozinho".
Após essa advertência de Dona Lu, quem
teve coragem de lhe perguntar algo? Afinal, palavra de Dona Lu sempre simbolizava
respeito. Mas só até naquela terceira sexta-feira de maio. Pois a trágica notícia
se espalhou como pólvora acesa: a rezadeira morreu de repente, após ter rezado
num tal de Expedito, carregado de enxame de coisa-ruim.
JN. Dantas de Sousa