A fuga (Dantas de Sousa) - conto

 

No Cariri cearense, gerou-se uma revolta no povo humilde, e ela crescia pouco a pouco. Zunia-se haver onda de roubo, ladroagem, corrupção. No entanto Júlio Simão, morador do agricultor Pedro de Melo, discordava dessa desordem e culpava os de oposição ao novo governo do Ceará. Chegou até a bradar que o mundo estava perdido, com tanta gente a querer o mal e a desunião na sociedade.

Entretanto Júlio Simão não esperava acontecer com ele aquilo que muitos lhe advertiam. Num domingo de fria manhã surgindo, ele acordou-se atordoado, deitado na grama da Praça do Cristo Redentor no Crato, e se deparou com a sua quebra de três meses de abstinência ao álcool. Não avistou carro nem ônibus da linha Crato-Juazeiro do Norte, mas só pombos a andarem e voarem baixo. A estação de trem fechada, porém abandonada. Quis saber a hora. Botou a mão no bolso direito da calça, e nada do relógio de pulso. De tão fraco, não conseguia se sentar no banco da praça. A cabeça doía, cheiro azedo de vômito subia da camisa e entrava pelo nariz. Acendeu nele a lembrança de casa. A esposa Naninha, na demora dele, deveria estar de cabeça cheia de coisas ruins.

Já em pé, Júlio Simão achou no bolso da camisa o pacotinho de cigarro brabo, lasca-peito, e a caixa de fósforos. Acendeu-o, baforou-o por três vezes, apregando-o no canto da boca. De repente, entrou na real: “Mas cadê minha bicicleta? E a minha feira?...”. Tragou fundo a fumaça, a fim de tomar pé da situação. Mas lhe bateu o desespero, e soltou a voz, que espantou pombos: “Eita peste. Minha Mãe das Dores, cadê o bacurim?”.

Resolveu ir à busca dos pertences. Procurou, procurou, até encontrá-los: a bicicleta, deitada por detrás do banco, na grama. O saco das compras ao lado dela. E o bacorinho amarrado nas duas pernas traseiras, a dormir debaixo do banco.

Passado o susto, ocupou-se no retorno ligeiro para casa, no sítio São José, no limite do Crato com Juazeiro do Norte. Amarrou de corda no bagageiro da bicicleta o saco da feira. No quadro dela, pendurou o bacorinho, a grunhir. E sem se incomodar com o alarido do bicho, arregaçou as pernas da calça até os joelhos, trepando-se na bicicleta. Antes da partida, traçou o sinal-da-cruz. Por fim, partiu em direção da saída do Crato, com a gritaiada do animal, de cabeça para baixo.

Nas pedaladas da bicicleta, abandonou o Luís-gonzaga assobiado, a fim de traçar plano quando chegasse à casa. Iria ajeitar a cerca de varas para afastar os bodes da vizinha, a velha Sinhá Maria. Eles deixavam esteira de merda no quintal para sua mulher Naninha limpar. Naninha era besta, até o genro mandava nela.

Passou a empurrar Júlio Simão a bicicleta para o alto da ladeira. Fazia esforço, devido à ressaca. Danado bacurinho se esganava. Mas conseguiu chegar à subida da ladeira. Parou para descansar. E ficou a admirar a Chapada do Araripe verde-azulada, juntando-se ao céu.

Mais calmo, ajeitou-se na bicicleta, de novo fez o sinal da cruz e deslizou ladeira abaixo. O vento entrava pela camisa, o chapéu de palha parecia querer voar. No final da descida da ladeira, não havia daquela vez barreira da polícia. Para Júlio Simão, ter ou não ter barreira era o de menos. Os guardas de Fortaleza eram seus amigos. Boatavam que fossem gabirus a roerem o ganho dos humildes.

Pouco distante, avistou Júlio Simão, debaixo da mangueira, a camioneta do Estado. Adiante dela, via-se a placa verde, de letras brancas, que ele sabia de cor: REDUZA A VELOCIDADE.  Aquilo não era para ele, pensou. Soltou no restinho da ladeira a gaiatice: “Avia, Simão, nesse avião”.

No entanto, o guarda barrigudo, de óculos escuros, cismou de lhe atravessar o braço comprido na pista, parecendo pau de cancela. Fez finca-pé, sem querer baixá-lo. Apitava feito cigarra. Teve, então, de obedecer à autoridade. Mesmo se agarrando aos freios da bicicleta com cuidado, perdeu o rumo da pista, estendendo-se no asfalto gasto. O bacorinho lá se viu de botar a boca no mundo.

Ajeitando o quepe, o guarda do bração aproximou-se. Quase não andava, devido à barriga quase a estourar os botões da camisa da farda. Júlio Simão nunca vira aquele dali. E ele foi logo lhe espionando o destino.  Não o deixou nem se levantar direito do chão, para colocar a bicicleta no pedal do equilíbrio. Já o magro, de cara de cachaceiro, também se encostou, a querer saber de onde vinha. De modo educado, Júlio Simão lhe falou:Eu, seu guarda, venho da feira do Crato. Sou dali do São José”.

- E esse porco, cidadão? - cortou-lhe a conversa o cara de caneiro, ajeitando o revólver na cintura: - Comprou na feira?

Júlio Simão aprovou com a cabeça e a voz. Procurou lhes estirar conversa: “Estava voltando da feira do Crato. Vinha apressado. A mulher e os filhos esperavam por ele em casa”. Mas o barrigudo lhe atrapalhou a fala: “Eu quero ver a nota”.

- Que nota, seu guarda.

- A nota fiscal, que prova que o porco é seu.

- Mas ele é meu de-vera, seu guarda.

- Ah, é?... Mas sem nota vai ter de deixar o porco.

Arregalou os olhos Simão. Sentiu ser enrolada do barrigudo, acoloiado com o rabo-de-cana. Refletiu, então, estar com a razão, e não abriria dos peitos. Cheio de coragem, passou a explicar às autoridades ser homem direito, honesto, derramador de suor na roça, morador das terras de Seu Pedro de Melo, no sítio São José. Comprara o porco com o suado dele mais da mulher. 

- Chega, cidadão - alteou a voz o barrigudo de óculos escuros. - Sem nota, tem de deixar o porco.

Diante daquela arrogância, Júlio Simão esmoreceu. Pelo cérebro se buliu jogar na cara dos policiais o que o povo remoía deles. Lembrou-se, dias atrás, Zé Lírio ter perdido segunda cesta de ovos de galinha...

- Sem nota, gritou mais alto o caneiro, você tem de deixar o porco. 

Decidiu Júlio Simão entregar o animalzinho. Teve pena dele a se espernear, com aqueles olhinhos de bila preta luzindo. Sob o olhar das duas autoridades, devagar ia desamarrando o bacorinho. Enquanto tirava as cordas, lembrou-se do bom tempo em que não se via falar de rapinagem dos guardas para com os caririenses. Mas com o tempo mudado, afrouxaram as rédeas do governo da capital cearense. Então, colocou nos braços, com lágrimas nos olhos, o bichinho a grunhir, a grunhir, a grunhir. Num rompante, avisou aos dois: “Pronto, taí ele” - e soltou o bacorinho.

Ao se sentir em liberdade, o animalzinho rodopiou nas patas e disparou pelo asfalto. A camioneta, vindo em alta velocidade, quase atropelou o barrigudo. Já o caneiro saiu a rolar pela pista, do escorrego que dera para agarrar o bacorinho. Alucinados, os dois policiais se esqueceram do posto e de Júlio Simão, que fugiu emborcado em sua bicicleta, numa carreira das-que-só, por entre pedaços de nuvem e de urubus a salpicar de preto o céu azul do Cariri.

JN. Dantas de Sousa

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