A Castanhola (Dantas de Sousa) - conto

Sábado de julho de 2020. José Batista, dono de padaria em Barbalha e sua esposa Carminha, professora do município, foram almoçar com doutor Maurício Batista e família. O cardiologista, primo de José Batista, residia em Recife. Vieram passar no Caldas do Bom Jesus dos Aflitos, distrito de Barbalha, dez dias de férias de julho. Já que José Batista possuía casa de veraneio no Caldas, cedeu-a ao primo por sê-la confortável, além da linda vista para a Chapada do Araripe e o Vale do Cariri cearense.
Durante o almoço, esquentado de uísque sem gelo, Maurício quis saber do primo sobre o abaixo-assinado para cortar a castanhola da calçada de Zé-de-júlia. A súbita lembrança pegou de surpresa Zé Batista, uma vez que o caso havia acontecido na véspera da viagem de volta para Recife do doutor e a família, quando de suas férias em 2016, no Caldas.
Naquele instante de silêncio na mesa, Zé Batista se lembrou do tempo de garoto dele com o primo. Maurício apreciava ouvir histórias, mas sempre querendo saber dos mínimos detalhes. E, diante da insistência do primo, ele pacientou-se. Encheu seu copo de cerveja para se animar na contação da história.
Após emborcar o copo de vez, Zé Batista lhe anunciou uma confusão debaixo da castanhola de Zé-de-júlia, a qual repartiu o Caldas. E que iria satisfazer o primo nos detalhes: deu-se perto do meio-dia, de sol morno. Só se ouvia na vila o vozerio, vindo do balneário. Na calçada da casa de Zé-de-júlia, De-jesus se achava debaixo da castanhola, sentada no banquinho de madeira, que trouxera de casa. Debulhava, com a peneira entre as pernas, andu verde.
De sua janela, ao ver a amiga De-jesus sozinha, Maria-preta animou-se para sair. Deixou a porta aberta e se escorou na sua cerca de arame farpado. Agarrada ao pau da cerca, ouvia De-jesus, sem parar a debulhação, contar-lhe a ignorância de Vicente-de-dôra. Após quatro meses sem pagar suas contas de energia elétrica, Vicente-de-dôra teve o desplante de empatar o funcionário do governo de querer cortá-la. Segundo De-jesus, ele era um Jó que pensava ser rei.
Obediente aos mínimos detalhes, Zé Batista revelou ao primo ser Vicente-de-dôra alcoólatra. Ai de quem se atrevesse contrariá-lo. No dia do corte da luz, ele pulou para fora de casa, com a foice e de olhos estufados. Prometeu esfolar quem se trepasse no poste e cortasse o fio do seu barraco: “Seja macho, pra ficar como linguiça pinicada”.
A fim de amenizar a confusão, o homem do corte se valeu da esposa de Vicente. Explicou-lhe cumprir ordem da empresa. Mas Vicente pulou diante do homem, encostou a foice no nariz dele e ordenou-o a se afastar da sua mulher aos gritos: “Na casa dele, bicho de saia não era macho”. E assim o homem desceu a Barbalha e de lá trouxe dois soldados, que fizeram Vicente miar.
Antes de Zé Batista prosseguir, Maurício chamou Vicente de estúpido, ignorante e merecedor de boa regulada. Mas logo lhe pediu desculpas por lhe ter atrapalhado. E aí Zé Batista jogou rápido outra isca: Maria-preta comparou Vicente-de-dôra tal qual Joaquim-de-genésio. Isso fez Maurício, alterado na embriaguez, a repetir: “Me conta, me conta, me conta logo, primo”.
Quando Maria-preta se referiu ao Joaquim-de-genésio, marceneiro da casa da frente, De-jesus parou de vez a debulhação. Apanhou o cachimbo, entre duas pedras, para acendê-lo. Enquanto jogava fumaça para as folhas da castanhola, ficou a ouvir Maria-preta disparar a língua: Joaquim-de-genésio havia emprestado ao cunhado Vicente sua calça branca, presente de aniversário da mãe, para o filho usá-la na passagem do ano. Mas o cunhado o convenceu de que iria ao casamento nas Cacimbas vestido nela.
Entretanto Joaquim-de-genésio, após perceber a sua burrada, arrependeu-se. Botou na cabeça que Vicente-de-dôra estragaria a calça, guardada com tanto zelo, enrolada em saco plástico. Embora a mãe lhe rogasse a não ir, Joaquim-de-genésio se esticou no rumo da festa. Lá, pregou o olho no cunhado. Na vez em que o rapaz se sentou no tronco tosco de coqueiro, no alpendre da casa, cochichou-lhe ao ouvido, para ele se levantar de lá. E quando o Vicente ao dançar a sós, embriagado, exagerou os passos, Joaquim-de-genésio explodiu diante de todos: “Feche essas pernas, Vicente. Assim vai rasgar minha calça todinha”.
De tão alta a gargalhada de Maurício que Zé Batista e os da casa se assombraram. De voz troante, deu seu parecer: “Que ignorantão esse Joaquim-de-genésio, meu bom primo”. Devido a essa passagem, o médico resolveu abrir outra garrafa de uísque. Em seguida, insistia ao primo adiantar a história.
Zé Batista teve de continuar: De-jesus quase derrubou a peneira do andu de tanto rir e gritar: “Minha Nossa Senhora, Joaquim-de-genésio não tem pingo de juízo. Avalie a vergonha do Vicente”. No entanto a conversa das duas foi cortada ao aparecer Joaquim-de-genésio no portão de sua casa. De-jesus quem primeiro o cumprimentou. Até o convidou para ele vir para a sombra da castanhola. E o bom é que nem deixou o rapaz-velho ajeitar o traseiro na galga da calçada. Soltou a língua: “Coitado do teu cunhado, Joaquim. Humilhou ele na festa”.
- Mas que satanás bateu a língua nos dentes, De-jesus?
- Maria-preta, Joaquim. Findou agorinha.
Pintou redemoinho embaixo da castanhola na calçada da casa de Zé-de-júlia. A balançar o pau da cerca, como a querer arrancá-lo, Maria-preta inchou a veia do pescoço. Rasgou o verbo para De-jesus: não aceitava ser fuxiqueira nem de conversar miolo de pote. Trinta e nove anos morava naquela rua e na mesma casa. Criou os filhos batendo roupa pra fora. Se Osébio, o marido, caía na cachaça, não era da conta de ninguém. Pinicou palavras: estava engasgada na goela dela a Olindina, que acusara Osébio de viado. E se ele fosse, foi porque se encantou com o vício. De mãos na cintura, olhar raivoso, Maria-preta concluiu de voz mais alterada: “Vão viver suas vidas, lacraias do inferno”.
Antes de Joaquim-de-genésio, encostado na castanhola, falar algo, De-jesus advertiu aos dois a aproximação do Vicente-de-dôra, a descer a ladeira da rua pé lá, pé cá. De camisa ao ombro, voz troante, aproximou-se da castanhola a esculhambar políticos e ricos de Barbalha. Ao se aproveitar da embriaguez dele, adiantou-se Maria-preta: “Vai de novo, Vicente. Não pague a luz não”.
Parado no meio da rua, Vicente-de-dôra se exaltou: “Que satanás bateu com a língua nos dentes, Maria-preta?
- De-jesus, agorinha.
Reabriu-se confusão. Do meio da rua, Vicente-de-dôra esculhambou De-jesus, dando-lhe cotoco. Chamou-a de fuxiqueira que nem cachorra no cio, em dia de lua nova. Mandou-a correr atrás do marido, para os dois acertarem velha conta, já que não podia dar peia em mulher como De-jesus, que não servia nem para se deitar na cama com o demo. E ainda mais a provocou: “Vai, vai buscar teu galo velho, pr’eu fazer ensopado dele”.
Essa vingança de Vicente-de-dôra se referia ao dia do corte da luz. Enquanto o funcionário se dirigiu à Barbalha, para buscar reforço, Zezo, marido de De-jesus, ao assistir à paciência do funcionário, meteu-se a dar conselho ao mulato. O homem não era de confusão e cumpria ordens do novo governo do Ceará.
Ao se sentir desafiado diante dos curiosos, rosnou alto Vicente-de-dôra: “De quem, seu mané-égua? Não tenho medo desse governo não. Traz ele aqui, seu corno, pr’eu arrancar aqueles seus dois olhos azul-caixão de anjo”.
Por causa do “seu corno”, o esquenta-rabo ajuntou mais gente. Apartaram já não apartando, de tanto os dois se agarrarem. Por pouco Zezo não matou Vicente-de-dôra. E ainda depois Vicente sempre reacendia o fogo, como diante da castanhola: “Não esqueci não, De-jesus. Quem levou não se esquece. Ele tem de provar se sou corno.
Joaquim-de-genésio, na sua vez, chamou Maria-preta de boca-porca, saco-furado. Debaixo da castanhola da calçada de Zé-de-júlia, o bafafá corria solto. De repente, a voz fanhosa de Zé-de-júlia apareceu: “Xô, xô, cambada do diabo. Vão pro inferno. Não vê eu adoentado?”.
Como se jogasse balde d’água em fogareiro aceso, a confusão parou. Diante dos briguentos e da multidão de curiosos, Zé-de-júlia, de perna engessada, agarrado à porta de entrada da sua casa, implorou-lhes deixá-lo em paz. Havia feito maior esforço para se levantar da cama, pulando feito saci. A cabeça se espocava de dor e da zoadaria.     
Aumentou ele ordem na frente de casa: fossem atazanar no inferno, e as duas briguentas tratassem de buscar o almoço dele. Pulando numa só perna, retornou para a rede, gemendo de dor. Diante do alarido de Zé-de-júlia, todos os presentes, em silêncio, levaram-no a sério, pela primeira vez.
Afinal, o rapaz havia quebrado a perna, e os parentes lhe deram as costas. Zé-de-júlia morava a sós, no casebre de barro, de taipa. Esperto limpador de mato, brocador de roça, mas quando caía na cachaça, virava a casaca. Zé-de-júlia inventou de comprar a bicicleta. Mas derrapou na areia. Levaram-no para o hospital de Barbalha bêbado de fazer dó. Encanaram-lhe a perna sem anestesia. Depois, rebolaram-no no casebre, na proteção do acaso. Por isso Vicente-de-dôra baixou a confusão: “Dessa vez, De-jesus, Vicente Gonçalo, filho do Joaquim dos Gonçalos, do sítio dos Moreiras, vou respeitar o amigo Zé-de-júlia”.
Joaquim-de-genésio se afastou primeiro e passou o ferrolho na porta de casa. Vicente-de-dôra desceu a ladeira, a gritar imprecações. Os curiosos também se retiraram. Só restaram as duas mulheres, separadas pela cerca. Cada uma delas fez seu juramento:
- Ainda me paga bem caro, De-jesus.
- Pode esperar, Maria-preta. A tua hora vai chegar.
De dentro de casa, Zé-de-júlia protestou: “Eita, peste. É satanás? Vão buscar almoço de Zé-de-júlia. E tragam café adoçado com rapadura preta”. Como se obedecessem ao desvalido adoentado, as duas mulheres silenciaram. Ao recolher a peneira, o cachimbo e o banquinho, De-jesus subiu a ladeira da rua, em silêncio. Maria-preta, antes de bater à porta de casa, olhou para o mundo, como se quisesse comentar algo.
A Castanhola continua em pé, sem precisar de abaixo-assinado para retirá-la de lá. Ai de quem se meta passar machado nela! Não tem lei no mundo arrancá-la de lá.
JN. Dantas de Sousa

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