Num
dia, um homem pobre, um pescador, saiu bem de manhã para pescar. Levou a tralha
e foi para beira do rio. Armou a vara de pesca. Não demorou tempo, ela
começou a envergar-se. Fisgou e tirou da água um peixe bonito, de bom tamanho.
Quando ele tirou o anzol da boca do peixe, o peixe disse para ele:
-
Não quero que você me coma. Eu te peço para me cortar em oito pedaços iguais.
Dois pedaços você dê para sua égua, dois para a sua mulher, dois para a sua
cadela. Os outros dois você enterre no fundo do quintal.
O pescador foi para sua casa e fez tudo conforme o peixe lhe mandou fazer.
Passado o tempo certo, a égua deu cria dois potrinhos, a mulher teve filhos
gêmeos, a cadela teve dois cachorrinhos e, no fundo do quintal, onde tinha
enterrado os pedaços do peixe, apareceram duas lindas espadas. O pescador pensou: “Aqui tem coisa. Parece um mistério. Parece que o peixe
indicou alguma coisa para mim. Vou esperar para ver o que vai acontecer.
O tempo foi passando, e os dois meninos ficaram moços e decidiram sair de casa
para procurar serviço, ganhar a vida. Falaram com o pai, e o pai disse:
- Está bem, filhos. Vocês podem sair de casa, mas tomem muito cuidado. Vocês
são gêmeos, muito parecidos e um pode pagar pelo erro do outro. Andem bem corretos
para nada de mau acontecerem. Eu não tenho dinheiro para dar a vocês levarem. Mas
vou dar um cavalo bom para cada um, um cachorro valente e uma espada das
melhores. Siga cada um o destino que Deus lhes der, e que Ele abençoe muito vocês.
Os rapazes se prepararam, montaram seus cavalos, pegaram as espadas e se
mandaram pelo mundo, seguidos dos dois cachorros. Viajaram, viajaram. Conheceram muitos
lugares. Um dia, indo por uma estrada, eles encontraram uma árvore muito grande
que estava sobre um barranco. Descansaram na sombra da árvore e trocaram umas
idéias. Um disse para o outro:
- Eu acho que não dá certo nós dois ficarmos andando juntos. Nós somos gêmeos,
um muito parecido com o outro, e isso pode não dar certo. Então, o melhor é a gente
se separar. Cada um deve seguir um rumo diferente.
O
irmão concordou e até combinou com ele o seguinte:
- Então nós vamos quebrar um galho dessa árvore. Cada um de nós plantará um galho
nesse barranco. Um galho me representa, e o outro representa você. Eu planto um
galho do lado direito da árvore e você planta outro do lado esquerdo de quem
vai para as bandas do riozinho que fica ali abaixo. Quando um quiser saber
notícia do outro é só voltar aqui e olhar o galho. Se ele estiver verde, viçoso,
é sinal de que o que plantou está vivo e com saúde. Se estive murchando, indicará que está doente, passando mal. E se estiver seco é porque já morremos.
Assim combinado, plantaram os galhos, se despedirem e cada um seguiu para um
lado. O que seguiu o caminho do riozinho, viajou, viajou muitos dias até chegar
numa grande cidade. Lá, ele leu no jornal o anúncio que o rei mandou publicar.
O anúncio dizia: se alguém conseguisse salvar a filha dele, a princesa, essa
pessoa se casaria com ela, pois havia um bicho-de-sete-cabeças naquelas bandas,
de cidade em cidade, doido para se alimentar. Se as autoridades não oferecessem
uma pessoa para ele comer, ele destruiria a cidade inteira.
O moço ficou entusiasmado em conhecer a princesa. Tomou informações e saiu à
procura dela. Andou pela estrada e encontrou a coitadinha sentada num barranco,
perto de uma mata, esperando a hora de ser engolida pelo enorme bicho. Era a
princesa mais linda deste mundo. A roupa dela era maravilhosa. O vestido tinha
sete saias. Os cabelos dela eram loiros e os olhos azuis. Era até um pecado
deixar o bicho engolir uma moça tão linda.
O moço foi chegando de mansinho e, com muita delicadeza, disse a princesa:
- Como vai, princesa? O que está fazendo aqui, sozinha?
Ela, com ar muito triste, respondeu-lhe:
- O meu fim é triste. Estou aqui esperando a hora de ser engolida por um bicho
medonho, de sete cabeças. Fui destinada para isso.
O moço, com muito jeito, chegou rentinho dela e se sentou. A princesa, muito
preocupada, disse-lhe:
- Eu acho bom você não ficar aqui. O bicho pode chegar agora e engolir você
também.
Mas o moço não deu muita importância para a conversa da princesa e não saiu de
lá. Alisava os cabelos dela e mostrava muita coragem para ela. Ela também começou a
fazer cafuné no moço. E, de repente, ela adormeceu. Então, ele aproveitou a
oportunidade e cortou um pedaço de cada uma das sete saias e guardou no bolso do
paletó dele. Fico ali mais um tempinho e nisso a princesa acordou.
Nesse
momento, eles dois começaram a ouvir um barulho que vinha por perto: chué, chué,
chué! Era o bicho faminto que se aproximava da princesa. O moço deu um beijo na testa da princesa e correu para junto do cavalo. Quando o
bicho estava pertinho dela, ele gritou:
- Pula na garupa do meu cavalo, que eu salvo você.
Imediatamente, ela pulou, e o moço gritou:
- Pisa meu cavalo, corta minha espada e avança meu Leão (nome do cachorro).
Num instante, deram fim ao monstro. Aí o moço pegou a espada e cortou a metade
da língua de cada cabeça do bicho e guardou dentro de um embornal. Deixou o
bichão mortinho, na estrada, e foi levar a princesa para o palácio. Ninguém viu
os dois indo para lá.
Quando
eles se separaram, a princesa deu para o moço um cachorrinho bem ensinado, que
obedecia a todas as ordens. O moço arrumou hospedagem bem perto do palácio.
Depois de pouco tempo, passou naquela estada um carroceiro preto, com a roupa
toda suja de carvão. Viu o bicho-de-sete-cabeças morto, estendido no chão, e
teve uma brilhante ideia. Ele também tinha lido no jornal a notícia que o rei
publicou: casamento da princesa com quem conseguisse livrá-la do monstro perigoso.
Não pensou duas vezes. Apanhou um facão que levava consigo, cortou as sete cabeças,
pôs na carroça e foi para o palácio.
No caminho, ele pensava: “Vou mudar a minha vida. Vou casar com a filha do rei”.
Chegou ao palácio, pediu para o criado ir chama o rei e se apresentou como
salvador da princesa. E entregou as provas, as sete cabeças. O rei disse para o
criado:
- Prepare um banho e melhores roupas para esse moço. Ele vai ser meu genro.
Palavra
de rei não volta atrás. E já mandou preparar uma grande festa para o noivado e
casamento da filha.
A princesa, muito tristonha, falou para o rei:
- Papai, não foi esse moço que me salvou. Foi outro. Eu não quero me casar com
ele. Ele está mentindo.
O rei respondeu para a filha:
- Como não foi ele? Ele trouxe a prova: as sete cabeças do monstro que ele matou.
Você não quer casar com ele, porque ele é preto. Mas vai se casar, porque eu
dei a minha palavra.
A princesa tentava explicar, mas o pai não mudava de ideia. Então o único
consolo dela era chorar.
.
No dia seguinte, logo de manhã, começou a grande festa. O moço convidou o
cachorrinho e foram para a porta do palácio. Quando foi servida a primeira
mesada de comidas e bebidas, o noivo negro pôs muita comida no prato, mas
quando foi levar a primeira garfada na boca, o moço deu ordem para o
cachorrinho:
- Vai lá e derruba o prato dele no chão.
O cachorro atendeu. O noivo já estava soltando fogo pelos olhos, de tão
nervoso. E gritava:
- Não tem ninguém neste palácio para tomar de conta e não deixar esse cachorro
vagabundo entrar no salão de banquete?
Mas o cachorrinho fez outras, outras e outras, obedecendo às ordens do moço. A noiva, inconformada com o noivo que não era do gosto dela, chorava o tempo
todo, de tanto desespero. O rei começou a ficar desconfiado da situação. Na hora de sair o casamento, o
rapaz entrou no palácio, gritando:
- Para, para, para, com esse casamento falso.
Aí, o rei, embora já tivesse dado a sua palavra, percebeu que alguma coisa
estava errada. Voltou atrás e mandou parar a cerimônia. O moço, então, lhe
perguntou:
- O que está acontecendo aqui?
O rei imediatamente lhe falou:
- É que o noivo matou o bicho-de-sete-cabeças. Logo, ele vai se casar com a
princesa, minha filha.
O moço perguntou ao rei:
- Vossa Majestade tem a prova de que foi ele mesmo que matou o bicho?
- Sim, tenho.
- E o que é?
- São as sete cabeças do bicho.
-
E nas sete cabeças as línguas estão inteiras?
O rei mandou verificar e viu que não estavam. E o moço lhe apresentou:
- Aqui estão elas. São estas as partes da língua que faltam. E estão aqui
todas as sete.
Então o moço tirou do embornal as sete pontas das línguas e pediu para o rei
verificar se elas completavam as línguas do monstro. E eram mesmo as pontas das
línguas dele.
A princesa continuava dizendo para o pai:
- É esse moço aí, papai, que me salvou.
O noivo negro bufava de raiva. Queria matar o moço visitante. Mas o moço fez
outra pergunta para o rei:
- O vestido da princesa, naquele dia em que ela ia ser devorada pelo bicho,
quantas saias ela usava?
O rei rápido lhe respondeu:
- Eram sete saias.
Então o moço tirou no bolso do seu paletó os sete pedacinhos das saias e pediu
para o rei mandar verificar se não estava faltando um pedaço de cada uma delas.
O rei chegou à conclusão de que tudo o que o moço falava era a pura verdade. Virou para o moço e lhe perguntou:
- O que que você quer que eu faça com o noivo mentiroso?
O moço respondeu ao rei:
-
Quero que asse numa fornalha.
E foi isso que o rei mandou fazer. A festa no palácio continuou, mas desta vez
com o noivo verdadeiro. O casamento foi maravilhoso e a festa durou três dias. Terminada a festa, o rei deu um palácio muito chique para o novo casal.
No
dia seguinte, o esposo da princesa se levantou e foi para a área do palácio. De
lá, ele avistou uma torre muito distante, e perguntou para a sua mulher:
- O que é aquela torre lá longe?
Ela
respondeu ao amado:
- É a torre da Babilônia. Quem for lá não retorna nunca mais.
O marido ficou curioso por saber o que tinha lá. Queria descobrir aquele
mistério, mas não disse nada para a esposa.
No dia seguinte, de manhã, ele pediu para a esposa preparar uma merenda, que
ele iria viajar, mas voltava logo.
Montou-se no cavalo, levou a espada e o Leão e foi parar na torre da Babilônia. Quando foi chegando, uma velhinha fogueteira, assanhada, foi lhe dizendo:
- Chega pra cá, meu filho, vamos dançar. - ela balançava os braços,
requebrava-se toda e sorria muito contente: quié, quié, quié. Pois ela havia arrancado
um fio de cabelo. E disse para o moço: - Vai lá e amarra o seu cavalo.
Em seguida, ela tirou outro fio e mandou-o ir amarrar o cachorro. E com outro
fio, mandou-o amarrár a espada. O bobo do moço obedeceu a todas as ordens da
velha.
Aí ela chamou-o para continuar dançando. Ele foi. A velhinha se rebolava, fazia
graça, girava o corpo dele, cantava, ria. O moço quis acompanhar os movimentos
da velha, mas percebeu que estava ficando fora de si e gritou:
- Pisa meu cavalo, corta minha espada e avança meu Leão.
E a velha voltou a lhe falar:
- Engrossa, meu cabelão.
Nisso os cabelos dela viraram grossas correntes de aço que ninguém dava conta
de rompê-las. Foi nessa hora que a velha encantou o moço, o cavalo, a espada e
o cachorro. Saiu vitoriosa. E o moço lá ficou, sem poder retornar para o palácio.
A princesa, no palácio, aguardava ansiosa a volta do esposo. Nesse meio de
tempo, o outro irmão gêmeo, que estava para as outras bandas, sentiu saudades
do irmão e resolveu ir naquele barranco e ver como estava o galho que o irmão plantara.
Chegou lá e encontrou o galho murcho, quase secando. Pensou: "Meu irmão está muito mal. Vou atrás dele”.
Tomou a direção que o irmão tinha tomado e saiu galopando o seu cavalo: placatá, placatá, placatá. Andou, andou, andou, até chegar a uma cidade grande. Quando ele ia passando perto do palácio, viu na área uma moça sorridente que acenava um lenço branco para ele. Ela ficou muito surpreso por aquilo aconrecer. E ouviu a moça falar para ele bem alto:
- Vem aqui logo, meu bem.
Aí, ele já não tinha mais dúvida. Pensou: “Ela acha que eu sou o meu irmão. E
ela tem razão, já que nós somos gêmeos”. E resolveu ir ao palácio. Chegou, entrou e a princesa lhe disse:
- Eu já estava morrendo de saudade de você. Por que demorou tanto?
O moço entrou meio ressabiado. Logo a princesa serviu o almoço. Ele comeu pouco.
Conversou pouco também. Ai se deu que a princesa achou o marido meio diferente,
muito preocupado. Quando chegou a hora de ir dormir, o moço estava desapontado.
Mas, para não a deixar aborrecida, foi se deitar com ela. Deitou e botou a
espada separando um do outro. A princesa achou aquilo estranho, ficou aborrecida
com a atitude do esposo e até chorou pelo desprezo que ele estava lhe dando.
No
outro dia, ele se levantou muito cedo. A princesa também se levantou e foi
preparar o café. Tomaram o café, e o moço saiu para a área. De lá, ele viu a torre
muito distante e perguntou a princesa:
- O que é aquela torre lá longe?
A princesa lhe respondeu:
- Não te disse, ainda ontem, que é a torre da Babilônia, e que toda a pessoa
que for lá nunca mais retornará?
O moço logo compreendeu que o irmão devia estar lá. Pediu para a princesa
arrumar uma merenda, porque ele iria dar um passeio pelos campos, mas não iria
demorar por lá. Logo depois, montou no cavalo, já com a espada, e foi
acompanhado pelo cachorro, também chamado Leão. Andou muito e chegou à torre da
Babilônia.
A velhinha, quando viu o rapaz, já lhe foi dizendo:
- Vem chegando, meu filho. Vamos dançar, vem, vem. E cantava: lá, lá, lá, lá...
E ria demais. Pegou-o pelos braços e rodava, dançava, pulava. De repente, ela parou de dançar, tirou um fio de cabelo dela e pediu para ele ir amarrar o cavalo. Mas o moço fez que amarrou, mas não amarrou. Do mesmo jeito, ele fez quando ela pediu para ele ir amarrar a espada e o cachorro. Depois, ela falou para o moço:
- Vamos continuar dançando.
O
moço dançou mais um pouco. Mas quando ele percebeu que iria se transformar, ele
gritou:
- Pisa meu cavalo, corta minha espada e avança meu Leão.
E a velhinha pediu-lhe:
- Engrossa meu cabelão.
Nessa
hora, uma voz respondeu a velha:
- Como eu posso engrossar, se eu estou no chão?