Após a morte do coronel nos seus
setenta e oito anos, Dona Valentina tirou o seu fervor de andar por diversão e
prazeres. Reprimiu as viagens, nos seus cinquenta e três anos, porém abriu a
sua residência para encontro com amigos e amigas. Raramente frequentava eventos
sociais.
Preferiu Dona Valentina organizar na
residência, em fim de semana, momento cultural. Devido a sua etiqueta e ao seu
gosto por arte, os avessos a isso se afastavam da lista da Vivenda das Flores,
a chácara de Dona Valentina. Lá, o que ela caprichava mais era prender o olfato
e o paladar dos convidados. Auxiliavam-na as suas três empregadas: Dora, Maga e
Gracinha, especialistas em culinária, adega e etiqueta.
Numa noite de sexta-feira de setembro
de 1986, na Vivenda das Flores, achavam-se o seu psicólogo doutor Manuel Menezes de Almeida com sua esposa doutora
Alexandrina Siebra de Almeida, nutricionista. Um casal sem filhos e
estudiosíssimos, de origem recifense. Naquele momento agradável, no espaçoso
terraço bem-iluminado e arejado, em meio ao espetacular gramado, palmeiras e
estátuas, o casal e Dona Valentina se inebriavam de vinho, comida e música
instrumental, por um terceto.
No meio da conversa, Dona Valentina se
lembrou de um casal de amigos. Numa sexta-feira à noite, em início de dezembro
de 1975, a presença do casal lhe fora deliciosa, uma vez que eles raiavam o papear
atraente. Marcou aquela noite a última dos dois, pois logo após morria o querido
juiz trabalhista, e a sua esposa não pode mais frequentar a Vivenda. Mas voltando a noite
de sexta, em certo instante, o convidado acentuou com precisão:
- Valentina, sexo por sexo é fuga. Mas
sexo com consciência é amor.
Acatou Dona Valentina a profundeza das palavras
do juiz. Por isso, ela apreciava acolhê-lo na casa. Ele puxava o assunto
para depois ouvir o outro.
***
***
Após Dona Valdemira apresentar-lhe a declaração
do seu finado amigo juiz, doutor Manuel de Almeida lhe pediu com educação
um instante para ele relatar um fato que se passara consigo numa manhã de
sábado, quando se dirigia a Barbalha, de ônibus. Não iria ele, naquele dia, dar
plantão no hospital barbalhense. Resolvera conversar com amigos numa praça do
centro.
Dentro do ônibus, ia sentado ao lado da
janela aberta. Lia na revista católica o artigo de um psicólogo. Escrevia ele
sobre orientação sexual na adolescência. Segundo afirmava, as formas de
relacionamento entre adolescentes causavam grandes preocupações na sociedade.
No entanto, para o autor, trazia-lhe estranheza observar o descaso e o
desrespeito com que o assunto sexo era tratado por diversos
especialistas.
Ao estar preso ao texto da revista, doutor
Manuel de Almeida não se importou com o passageiro que se sentara do seu lado.
Mas sentia-se incomodado com o rapaz a querer saber o que ele lia. Sem lhe
pedir licença, o rapaz pôs o dedo sobre a foto do texto e lhe mostrou a sua
opinião: “Que coisa horrível, senhor. Como essa, sem responsabilidade, muitas têm
filho. Quem planta vento colhe tempestade”.
A continuar incomodado Manuel de
Almeida lhe sorriu, e mais pelo provérbio no final de sua fala. Procurou não
lhe comentar nada e se deixou navegar os olhos para fora do coletivo. De novo o
rapaz insistiu, ao apontar-lhe o dedo indicador pela janela: "Veja os dois
se beijando ali? Logo ela vai estar grávida e sem preparo para ser mãe".
Fechou o psicólogo a revista. Buscou
lhe mostrar as consequências da vida sexual antes e fora do casamento: pais
solteiros, filhos abandonados, órfãos de pais vivos, além de abortos,
adultérios, destruição familiar, doenças venéreas, AIDS etc.
Enquanto lhe falava, observou dois
passageiros, sentados nas duas cadeiras da fila ao lado, a prestarem atenção à
conversa dos dois. Doutor Manuel de Almeida explanava ao rapaz que nunca, como na atualidade, tão solto está o pecado da luxúria. E ainda se alastra pelos
meios de comunicação. Mas o rapaz lhe cortou a palavra: "Estamos invadidos
por um mar de lama, a trazer imoralidade para dentro das casas, sem respeitar
crianças e velhos".
Antes de concordar com o rapaz, a
mulher idosa da cadeira da frente, virou-se para trás e pediu aos dois licença
para falar. Apresentou-se católica e perguntou-lhes se eram evangélicos. Sem os
deixar responder, ela emitiu seu pensar: “Sexo é lindo, mas quando ele sai do
plano de Deus, se dá um verdadeiro desastre: se explode como bomba atômica”.
Tanto o psicólogo como o rapaz não aguardavam
ouvir aquilo. E o senhor de boné, camisa rubro-negra completou: “Me desculpe
intrometer na conversa de vocês. Mas essa tal de camisinha foi levando a
fazerem sexo sem rédea. Eu acho que é grande mentira se dizer que camisinha é
segura. Tive um caso lá em casa: minha terceira filha se engravidou com ela. Só
digo uma coisa: essa história de liberdade pra sexo já se tornou safadeza. Só
serve pra aumentar a prostituição e a população. Tem mais, depois de homem com homem
e mulher com mulher… Deus tenha piedade deste mundo”.
Pairou o sopro de silêncio dentro do
coletivo. O psicólogo observou estar diante de dois motéis. Meditou: a
exploração comercial do sexo atinge níveis assustadores. Colocando o ser
humano, especialmente a mulher, no baixo nível de dignidade. Aproximaram-se
dele sutis indagações: será que Deus iria sempre ficar indiferente a essa
luxúria? Será que a própria natureza humana iria deixar de reagir contra tanta
bestialidade que hoje se pratica nas tevês e nos filmes? Será que essas
iniciativas assistenciais conseguirão baixar o alto índice de gravidez precoce?
Ou, ao contrário, acabariam incentivando ainda mais a prática sexual entre
adolescentes?...
Teve de voltar à realidade doutor
Manuel de Almeida. O rapaz do seu lado chamou o psicólogo a sair do seu
silêncio: “Acho que o senhor sabe, sendo mais velho que eu: a fornicação é sexo
fora do casamento. E é um pecado sem controle”.
Por aquilo o psicólogo não esperava
ouvir. Perguntou-lhe se ele tinha certeza do que lhe dissera. Ao que ele,
rápido, lhe respondeu, como se fosse um adulto com suas convicções formadas: “A
satisfação do sexo, senhor, não está presa ao corpo. Deve estar atrelada ao
coração, ao espírito e à mente. Sem amor e compromisso, o sexo torna-se vazio,
perigoso e banal.”. E terminou de expor seu ponto de vista já em pé, a se aprontar
para descer na entrada de Barbalha. Despediu-se do amigo, sem saber quem o
era.
Após ouvir as palavras do seu
psicólogo, Dona Valentina proferiu sua opinião: "Quantas pessoas, doutor Manoel
de Almeida, destruíram-se e se destroem porque foram insanas com os próprios
corpos. O desrespeito ao corpo, seja pela impureza, ou por vícios e
imprudências, compromete a integridade e a dignidade da pessoa, que é, na
verdade, o templo de Deus".
A conversa dos três foi impossibilitada
de continuar devido às funcionárias de dona Valentina os convidarem para a hora
do jantar. Lá do jardim, ouviram o relógio de parede, dentro da luxuosa
residência, bater dez pancadas noturnas. Para os três, a noite os convidava a se
saciar do glamoroso Vivenda das Flores, a residência de Dona Valentina feito
museu.
JN.Dantas de Sousa