Descia, pela Rua São Pedro, a penúltima escola de Juazeiro do Norte, conhecida como Escola Normal, destinada à formação de professoras. Nas calçadas, de um lado e do outro, a multidão, separada por cordas, assistia barulhenta ao desfile do Dia Sete de Setembro. As alunas da famosa escola se vestiam de blusa branca, gravata e saia pouco abaixo dos joelhos, ambas vermelho-tinto. Destacava-se o pelotão das bandeiras. À sua frente, portando a bandeira do Brasil, marchava Regina Estrela de Oliveira, aluna do último ano do Ensino Normal. De olhos castanhos, cabelos pretos e lisos até a cintura, trazia ela delicado sorriso. Na época, diziam ser ela uma das moças mais bonitas da cidade. Mas o seu plano consistia em ser professora da Escola Normal. Não havia passado por sua mente nem a vontade de namorar.
Na esquina da Rua São Pedro com a Rua São Francisco, Regina Estrela de Oliveira aguardava a escola da frente acabar de desfilar diante do palanque das autoridades, em frente à Praça Padre Cícero. E foi durante esse breve intervalo que ela, a porta-bandeira do Brasil, ao voltar o rosto para a esquina da direita, onde era a agência do Banco do Brasil, surpreendeu-se com aqueles olhos verde-escuros, fitando-a com firmeza. Agarrado à corda, o rapaz parecia querer lhe dizer algo. Sem ela esperar, ele lhe mandou o beijo.
Seu Zuca e Dona Regina, durante quarenta e quatro anos de casados, permaneceram em paz. A única tristeza da esposa era o marido se ocupar mais da bodega sortida, com muitos fregueses. Raramente ele a acompanhava à igreja, para assistirem à missa do domingo. Mas Seu Zuca conservava duas obrigações religiosas. A primeira, a Renovação do Sagrado Coração de Jesus, em sua residência, no dia quinze de agosto. Dona Baião, a rezadeira, tirava a Renovação. Já a segunda obrigação ocorria todos os dias. Após fechar a bodega, às dez da noite, Seu Zuca rezava o terço com a esposa.
Levantou-se da cadeira Dona Regina a fim de passar o café. Avistou pela brecha da janela o dia a amanhecer. Enquanto coava o café, veio-lhe à mente a imagem do Tião. E a imagem dele lhe invadiu a imaginação. Viu-o direitinho os olhos verde-escuros dele. Lembrou-se de quando José mandava Quininha lhe dar almoço, janta e merenda. Tião grudara-se na bodega do marido. Seu Zuca e Dona Regina o sustentavam. Até roupas usadas lhe davam. Tião só não fazia morar na casa.
Todos os dias da semana, o mendigo chegava cedo à bodega para receber o café da manhã e prosear com o marido. Andava com o inseparável saco às costas. Tião não era aposentado, vivia de esmolas. Seu Zuca pagava-lhe aluguel do quartinho, dentro da vila de casas, ao lado da igreja de São Francisco. Situava-se a três quarteirões da bodega de Seu Zuca.
Desde que Tião havia chegado à bodega, vindo de não sabe de onde, acendeu-se em Dona Regina aversão a ele. Por mais que o marido lhe pedisse para ser benevolente com o mendigo, ela guardava dentro de si o pensamento esquisito, como se Tião lhe mostrasse herança de tristeza.
Levantou-se da mesa da sala de jantar Dona Regina sem ânimo. Entrou no quarto e deitou-se na cama de casal. Novamente lhe retornou a trágica noite da quarta-feira, em meio à Hora da Graça (missa e logo após bênção do Santíssimo Sacramento no Santuário de São Francisco das Chagas, em Juazeiro do Norte). Ao sair da igreja, Dona Regina se atentou para o trágico ocorrido: dois homens foram assassinados. Ao chegar à rua da sua residência, avistou Quininha aos gritos, nervosa, sem ninguém a acalmar.
Levantou-se da cama apressada Dona Regina. Correu para a bodega. Empurrou a porta e passou a rememorar a cena: entre o balcão e as duas portas de ferro abertas para a rua, o marido, no chão da bodega, como se estivesse dormindo por cima de Tião, também ensanguentado, sem se mexer. Lembrou-se de ter recebido do policial a bolsa de documentos do marido e o saco de Tião. Segundo o policial lhe aconselhara, o saco serviria para esclarecer algo sobre o mendigo.
Dona Regina se arrepiou ao segurar o saco de pano. Parecia-lhe Tião a querer de volta o imundo saco. Para espantar o mal, ela se benzeu com três sinais da cruz. Mas, no instante de tamanha aflição e medo, sozinha dentro da bodega, Tião lhe desejava revelar uma notícia, ou fazer as pazes com ela.
Correu até a sala de jantar Dona Regina. Sentia o desespero a lhe querer asfixiá-la. Por providência de Deus, batiam-lhe à porta do salão. Era a voz de Quininha a retornar. Abraçou-a como se fosse a única pessoa mais querida do mundo. Começou a lhe contar o que ela havia visto e ouvido, sozinha, dentro da bodega, instantes atrás.
- Dona Regina, alertou-lhe a
empregada, não jogue fora o saco de Tião.
Dona Regina mudou a conversa. Pediu a Quininha cozinhar algo para comerem. Sentia-se fraca, devido a tranquilizantes e café. E enquanto a empregada se dirigiu à cozinha, veio-lhe à mente abrir o saco de Tião. Lembrou-se de que havia deixado debaixo do balcão da bodega. Pegou-o e trouxe para o claro.
Quininha tinha aberto a janela da sala de jantar e terminava de varrer o local. Ali, Dona Regina abriu o saco e se deparou com o caderno grosso. Arrepiou-se. E mais ainda, quando Quininha lhe informou: "Já pegaram o nojento que tirou a vida do Seu Zuca e de Tião. Soube na rua quando vinha pra cá".
Quininha voltou aos afazeres da casa. Atônita e amargurada, sentou-se Dona Regina na cadeira de balanço. Tremia-se, agarrada ao caderno engelhado de Tião. Abriu-o. Começou a passar os olhos pelas páginas amareladas. A letra legível de quem frequentara escola. Apressada, ela o lia. Descobriu nele uma coincidência: Tião e seu marido eram dois alagoanos.
Antes de prosseguir a leitura, Dona Regina buscou mais algo no saco. Encontrou a identidade de Tião e leu o nome completo dele, do seu pai e da sua mãe. Então decidiu observar a identidade do marido. Finalmente, comprovou: eram irmãos de pai e mãe. No instante, aflorou-lhe o pensamento de que ninguém deste mundo, nem tampouco Quininha, iria saber nada sobre Tião, ou Sebastião Lira de Melo.
Dona Regina queimou o saco e o que havia dentro dele.
JN. Dantas de Sousa