Muitos diziam que a história de Manuel-do-santa-cruz carecia da verdade. Isso o enfezava e ele jurava não ser homem de mentira. Também Neco-de-loura, mais idoso que Manuel, jurava pelas almas do purgatório haver ocorrido o fato no arruado Santa Cruz. Assim como Raimundinho que, antes de narrar a agonia, fazia o sinal-da-cruz e jurava por Deus, Jesus Cristo e Santo Antônio. Esses três moradores do Santa Cruz relatavam, com detalhes, o casamento de Tiquinho mais Vicência.
Iniciou-se no sábado pela manhã, dia doze de junho, e findou no início do domingo, dia treze de junho de 1973, dia de Santo Antônio, padroeiro de Barbalha.
No sábado, o Santa Cruz mais animado amanheceu, com azulado tempo, sem nuvem. Por volta das dez horas, cinco camionetas chegaram
ao arruado, para levarem os noivos, familiares e convidados até a Matriz de
Santo Antônio, em Barbalha. Aproximaram-se da casa da noiva, apitando animadas.
Após pararem, os motoristas, mesmo assediados pelos presentes, enfiaram-se pela
porta da cozinha, por trás da casa. Ouviam suas conversas altas, suas
gargalhadas, enquanto bebiam café com macaxeira cozinhada.
Na sala da frente, os noivos mostravam-se agoniados. Desde sete da manhã, foram forçados a vestirem os trajes nupciais. Dona Ernestina, mãe de Vicência, gorda e nervosa, misturava lágrimas de felicidade pela filha mais velha se casando, com o desespero da hora da celebração na Matriz. O vigário marcara duas da tarde, em ponto, o início do ato litúrgico. No dia da reunião dos noivos, avisara que deveriam chegar à uma da tarde, para conferirem os papéis.
- Se arribem, gritava pela casa dona Ernestina,
de vestido cor-de-jerimum.
De tanto insistir, acabou a levantar o povo. A casa ficou de perna para o ar: gritaria desencontrada, correria em direção ao terreiro da frente. De lá do terreiro, cinco motoristas apitavam e gritavam aos familiares e convidados encherem as camionetas. No corre-corre, uns davam tropicões nos outros, e ninguém pedia desculpas. As mulheres da cozinha correram para o alpendre da frente, com seus aventais de sacos de açúcar, a fim de assistirem à saída dos noivos. Na partida, Dondon, pai da noiva, em cima da primeira camioneta, a vermelha, berrou alto de cachaça: "Viva os noivo!". E a turba respondeu: "Vivá! Vivá!".
Enfim, deu-se a partida da comitiva. No início, a camioneta
vermelha de Zé Miguel. Fora escolhida para levar Vicência mais a família. O
dono dela insistiu levá-la à igreja a sua afilhada de batismo. Justiça seja
feita: Zé Miguel caprichou no polimento e nas quinquilharias da cabina: o
bonequinho negro e nu, pendurado no retrovisor interno, a estátua de Santa
Edwiges, de costa para a estrada, e o ventiladorzinho a girar. O padrinho derramou
seiva de alfazema. Zé Miguel explicou que a alfazema era para a afilhada sentir
o perfume das virgens, naquele seu último dia de moça.
Atrás da camioneta de Zé Miguel, seguia Tiquinho e
familiares na camioneta preta do Apolônio, vereador de Barbalha. Espalhou-se o boato que o veículo preto trazia o azar. No ano passado, na festa de Santo
Antônio, deu-se o capotamento dele, com saldo de cinco mortes e muitos feridos. Arrepio
sentia o povo para não andar nela. Apolônio teimava não se desfazer da azarada.
Quando pelo terreiro a preta azarada apareceu, dona Ernestina, ao avistá-la, benzeu-se com três sinais-da-cruz. Mas como Apolônio dirigia, engoliu a superstição, porque lhe devia favores. Todavia comentou para amigas o seu arrepio de cabelo nos braços na chegada da agourenta. Lembrança de morte carregava consigo dona Ernestina desde o destroço que ela assistira, na descida longa, perto do distrito do Caldas. Tragédia já pegando meio-dia. Ela e muita gente viram pedaços de gente, espalhados pelo asfalto. O motorista trazia gente demais na carroceria. Dona Ernestina presenciou o guiador batendo o catolé, com boné do AA (Alcoólicos Anônimos) preso à cabeça. Adiante, viu o coitado do Chico-do-pelo-sinal, botando último ar dos pulmões, a denunciar o motorista: “Ele já saiu do Jardim puxando fogo".
Atrás das duas camionetas dos noivos, seguiam três camionetas apinhadas de gente, a se arrastarem parecendo não quererem seguir viagem.
Rodavam sem poeira levantar. A última, a amarela de Benjamim. Até
que, na curva do cacimbão, as cinco desapareceram.
***
Nêgo-luís-de-dona-didi chegou aos gritos, quebrando
o zunzum da casa: “Lá se vem o pessoal, minha gente. Já estão aparecendo na curva do cacimbão”.
No instante, correram os que se encontravam dentro
da casa em busca do alpendre da frente. As mulheres da cozinha, retirando os aventais,
foram as primeiras a chegar. Ainda do interior da casa, meninos que nem formigas
tropeçavam por entre as pernas das mulheres, ou se jogavam escada abaixo,
sujando-se no barro vermelho do terreiro.
Cego Zé Guedes, agarrado à sanfona, pela casa tateando,
lançava praga aos demônios dos meninos que passavam batendo nele. Na casa, só
o sanfoneiro não avistava a comitiva naquele cinco da tarde.
As camionetas, na estrada estreita de areia, vinham
acompanhadas pela procissão de cavalos e bicicletas, além de poucas motos. Dava-se para apreciar o sol a entrar por detrás da Chapada do Araripe, chega derramava restinho de
vermelho-rubro sobre o poente. E o ventinho frio de final de inverno se aproximava.
No momento em que a comitiva passava devagar pela cancela estreita da entrada do sítio de Dondon, pai da Vicência, André-dos-foguetes correu o tição pela fila de fogos, que espalharam pelo céu o
bombardeio. E a gritaria assomou: "Viva os noivô. Viva os noivô".
Apertado no terno branco, Tiquinho arriou-se
primeiro da camioneta do Apolônio, acenando para o pessoal. Embora desgostoso
com o protético de Barbalha, o qual não lhe entregara a tempo a sua dentadura
de cima, não se conteve: mostrou a gengiva superior a todos, enquanto subia
galopando a escada do alpendre com a noiva vermelha de cosmético e cerimônia,
enfiada debaixo do sovaco dele. Sem esperar, cego Zé Guedes puxou, na sanfona
vermelho-branca, o toque do Parabéns pra vocês. Os presentes,
batendo palmas, acompanharam-no cantando.
Atravessando-se no meio da sala, de camisa toda
aberta, agarrado à garrafa de cerveja, Dondon convocou os do Santa-cruz, os do
Caldas do Bom Jesus dos Aflitos e até os que vinham de lá da Baixa-da-égua, para molharem a garganta. E
continuou seu alarido: “Vão logo se empanturrar da amargosa. Não perca tempo,
cambada”.
A sala de visitas e o resto da casa depressa de
gente se entupiu, que nem nuvem grossa de abelha. Ao lado do santuário, na
sala da frente, santos disputavam espaço com flores artificiais. Tiquinho
mais Vicência, sentados no sofá de lençol bem alvinho, estiravam as mãos nos
cumprimentos. Acima dos dois, a ampliação da fotografia dos pais da noiva
relembrava a mesma comemoração.
- Cego Zé, rasgue a sanfona pro povo esticar as
canelas - ordenou Dondon, a pinotar pela sala.
Ecoou pela casa o Cintura Fina, xote de Luís Gonzaga. A sanfona parecia se rasgar, acompanhada pelo zabumba, pandeiro, triângulo e fogos. Assim puxaram a gente da redondeza, e dançarinos na sala da frente aumentaram mais. Zé-de-nenzinha mais Concebida, Tõin-cansanção com a viúva de Sulino, Compadre Né mais Santanina, entre outros, Negro Dozinho embriagado a dançar sozinho, pé lá, pé cá. Era um fuzuê desconjuntado. E Dondon berrava a todo vapor para encherem o bucho, sem cerimônia, na cozinha da dona Ernestina.
Perto da meia-noite se situando. O sanfoneiro com dedos ativos nos teclados, o zabumbeiro a dançar com zabumba grudado na
barriga e o pandeirista teso, com cigarro a equilibrar-se na boca.
Lá do terreiro, atrás da casa, só se ouvia a gritaria de Tiquinho. Deixara Vicência no sofá, ainda a receber os cumprimentos, e se atolava na cerveja e no que viesse. Insistia aos amigos o imitarem assim: "Quem é macho pra ficar numa perna só". Atrevido, Mundinho-do-exu atiçou o fogo: "Desse jeito Tiquim não consegue cortar o cabresto da eguinha".
Aprumando-se numa perna só, Benjamim intrometeu-se: "Mas a eguinha do Tiquinho ainda tem cabresto?". Eita que eita. Arrebentou-se ventão forte de briga. Instalou-se bate-boca entre Tiquinho e Benjamim, acompanhado de empurrões. O noivo lhe forçava botar provas na mesa. Desejava panos a limpo passar.
Precisou-se de dois amigos segurarem os braços do noivo. Fê-lo sentar-se no toco de imburana, perto da porta da cozinha. Já Dondon, falando embolado, admoestou o Benjamim: "Juízo, homem, não fica nos pés. Tu acabou virando a panela cheia".
De cara de não querer conversa, Tiquinho largou-se de todos e dirigiu-se para a sala de jantar. Não mais quis beber, nem procurou conversa com Vicência, apesar da esposa lhe implorar para eles dois juntos ficarem. No entanto, Tiquinho resolveu se sentar sozinho no banco de madeira, que vivia no terreiro do lado esquerdo da casa, onde o sol nunca dava na parte da tarde. Deixou-se levar pela imaginação. Dentro dele, bolavam de um lado para outro as palavras de Benjamim, amigo de Dondon. Já ouvira falar que o safado era metido a criar confusão por onde passava. A língua dele era maior que o trem. Já tinha escutado histórias dele, jogando os pés diante das mãos, com mulheres se enxerindo, até com as casadas. Nunca dera cabimento para o intrometido se meter na sua vida. Achava-o intragável, ao vê-lo contando no meio das mulheres piadinhas imorais, ou vida alheia cutucando por trás.
Quando se deparou com o desgraçado na casa de Dondon, naquele momento tão importante de sua vida, quis o pensamento ruim o seu dia atrapalhar. Conteve-se, para não pedir ao pai da noiva embora mandá-lo. Uma coisa em sua cabeça zunira que ele estragaria sua festa. Por isso, era preciso ele mesmo lhe dar uma lição das boas. Precisava dar satisfação aos amigos e parentes. Não iria passar batido deixar aquele desaforo em vão. Prometeu, então, a si mesmo: “Quem me deve paga”.
Acocorou-se Tiquinho por detrás da camioneta amarela
de Benjamim. Dali se dava para ver a curva do cacimbão sem
ninguém e com a lua cheia a clarear estrada acima. Balançavam-se devagar as
folhas das árvores, mas o friozinho como alfinete pela sua pele se enfiava.
Na sua cabeça, o plano da vingança se encaixando ia: era só Benjamim à
camioneta se encostar, para no cangote dele pular, sem dar tempo do desgraçado
o bico abrir.
- Cadê os noivo, minha gente, insistia Dondon. -
É hora da dança dos dois.
Só que o noivo para a dança não se dava mostra. Na sala da frente a morder os beiços, Vicência se impacientava. Alguém anunciou que tinha avistado o noivo no lado de fora da casa, de tristeza caído, sem qualquer prosa querer. Outro sentiu o noivo de lundu no alpendre, a só espiar a festa. Diante disso, a mãe da noiva começou a alarmar: "Desde de manhã que eu já sentia cheiro de diabo por perto".
A sanfona de cego Zé Guedes esperava calada pelo noivo. As horas a voar se iam, e a barra do dia, ainda frio, a venta de fora a botar, sem o noivo cabimento dar. Mais aumentou a agoniação quando Negro Dozinho, subindo os batentes do alpendre, de olhos esbugalhados, da gagueira tentava se livrar: "Tá, tá, tá, lá." - e para o cacimbão apressado apontava.
Antes do negro mais palavras desenrolar, a gente da casa para o local indicado se disparou. Empurra-empurra se deu para a multidão espiar. As mulheres, aos gritos, se valiam de Deus e do Bom Jesus dos Aflitos. Os homens, em silêncio, afastavam do local mulheres e crianças, levando-as para a casa à força. E diante do punhado de homens via-se Benjamim deitado de bruços ao lado da sua camioneta amarela. Uma coisa horrível: a lâmina do punhal na camisa de listras enterrada, e o cabo preto de fora.
Mais adiante, cerca de dez metros, pendurado no galho da
mangueira, encontraram Tiquinho no terno branco vestido. Para espanto do povo do arruado Santa-cruz, Tiquinho mostrava sua língua arrodeada de moscas e mosquitos, seu rosto arroxeado e seus olhos
esbugalhados.
Daquele dia em diante, a conversa sobre o noivo que se suicidara no dia das núpcias se propagou. O povo do Santa-cruz, da redondeza e até de muito longe, passou a chamar aquela mangueira de mal-assombrada. Debaixo da árvore, nenhum animal de corte, nem ninguém, conseguia um só instante descansar. O homem todo de branco, os que já o viram juraram ser mesmo a alma penada de Tiquinho. Até certo tempo atrás, o infeliz teimava em se balançar no galho da mangueira, sem que os de lá do Santa-cruz dele se desimaginasse.
JN. Dantas De Sousa