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Geralda (Dantas de Sousa) - conto

Diante do espelho do banheiro, Alberto Gomes Firmeza certificou-se de que havia chegado da rua estressado. Logo na sua entrada, a esposa, ao recebê-lo na sala da frente, procurou saber o motivo da tristeza. Mas ele lhe respondeu que após o banho se desabafaria. E dirigiu-se depressa ao banheiro. Durante o banho, Alberto Firmeza esforçou-se para afastar os pensamentos que trouxera da rua. Foi em vão, pois eles lhe grudaram no cérebro. 
Ao deixar o banheiro, pregou os olhos no calendário, afixado na porta do quarto. Vinte e cinco de abril em vermelho, por ser domingo, falou para si mesmo. Domingo amanhecido escuro, chuvoso. Domingo, dia certo para ter permanecido com a família. No entanto, um domingo que, sem ele esperar, uma voz de mulher a avisar a ele diante de sua residência: "Doutor Alberto, minha mãe está passando mal".
Doutor Alberto abriu a cortina da janela da sala de visita. Avistou ele, agarrada à grade do jardim, uma mocinha magra e toda molhada. Ao vê-la naquela chuva e aflita, o médico fechou rápido a cortina e se dirigiu a ela. Ao abrir o portão, a moça, de mãos postas, valeu-se dele de voz chorosa: “Doutor Alberto, pelo amor de Deus, minha mãe precisa da sua ajuda”.
O médico convidou a moça para sentar-se no hall, explicando-lhe que iria trocar de roupa. Depressa, porém, retornou. Saíram, então, os dois na camioneta do doutor, com a chuva grossa a descer pelo para-brisa. Mais adiante, a moça cortou o silêncio da boleia: "Minha mãe é Geralda, doutor. A do café da esquina, em frente ao pronto-socorro, onde o senhor trabalha. Ela está com febre o tempo todo".
Enquanto dirigia devagar, doutor Alberto se desviou da fala da mocinha para penetrar no seu cotidiano. Ao entrar e sair do plantão, atraía-se pelo Café da Geralda. Vez por outra, deparava-se com Geralda à porta. Chegou a cumprimentá-la algumas vezes. Até sentiu vontade de entrar no recinto, para beber refrigerante, ou café. A correria de médico, porém, não o deixava conhecer o ambiente simples.
- Já estamos chegando, doutor Alberto, alertou-lhe a moça, apontando para a parede amarela do Café. - Vou pegar o guarda-chuva.
Nem bem pararam diante da porta azul do comércio da Geralda, a mocinha pulou da camioneta e entrou. Voltou rápido com o guarda-chuva. Abraçados os dois, atravessaram o corredor, apertado de engradados de refrigerante, de cerveja. Depois, pularam o esgoto, até chegarem ao quarto meio-escuro, cheirando a mofo, no final da casa.  Deitada na cama de casal, enrolada no lençol alvinho, com cheiro de naftalina, Geralda recebeu com choro o doutor: “Estou me havendo, doutor Alberto. Três dias, e nem como nem trabalho".
O médico se aproximou da cama de Geralda. Tocou-lhe no braço. Ela, esforçando-se, ergueu-se em silêncio, indiferente a que seus ombros ficassem a descobertos. Deixou-se auscultá-la sem falar, de olhos fechados. A julgar pelos movimentos no rosto sombrio, escurecido pelas sombras do quarto, ela conseguiu lhe revelar que tivera de madrugada palpitação. Pensava que ia morrer, mas se fez de forte.
Doutor Alberto continuou o exame, sem olhar para a mocinha debruçada na testeira da cama. Depois de alguns minutos, explicou a Geralda que ficaria bem de saúde. Mandou-a deitar-se e sentou-se para escrever. No instante, a mocinha acendeu a lâmpada do abajur. Os olhos de Geralda começaram a piscar. De repente, a doente caiu num choro nervoso, agarrada a sua cabeça.
Paciente, doutor Alberto procurou acalmá-la, não com remédio ou conselho, porém com palavras amáveis. E, após ela se acalmar, o médico retirou da maleta o comprimido e o pôs na mão dela. Ela o engoliu com a água dada pela filha. Ainda mais, doutor Alberto ajudou a sentá-la na testeira da cama, dobrando-lhe o travesseiro às costas. Assim, pouco a pouco, Geralda se tranquilizou. Até se ajeitou sozinha na cama. Enquanto o médico bebia o refrigerante de guaraná, Geralda de olhos mais ativos lhe declarou: "Botei fé no senhor, por ser o único que me trata diferente dos outros".
Agradeceu-lhe o médico com emocionado sorriso, porém a vontade se buliu dentro de si para saber algo da vida de Geralda. Arrodeando-se nos pensamentos, prometeu-lhe voltar no dia seguinte, com remédio de graça. Entretanto, antes de aprontar-se para sair, ajuntou força e lhe perguntou de onde ela era. 
De voz lamentosa e lenta, Geralda lhe respondeu ter nascida em Assaré, município do Cariri. De lá, fora levada ainda moça, por sua tia já madura, a fim de trabalhar na casa de uma família, em Fortaleza. Só que mais tarde arranjou sozinha outro trabalho, na casa de um comerciante, no bairro da Aldeota. Lá, ela demorou mais tempo. No início, tudo andou um céu. A dona da casa lhe deu roupa, perfume, até relógio bom. Após instante em silêncio, lamentou-se de ter havido uma mudança, como se muda de nada o tempo.
Depois de enxugar lágrimas com o lençol, Geralda descobriu ao médico ainda guardar uma grande mágoa de Fortaleza. Aconteceu em 1969 a sua gravidez. A partir daí, desesperou-se. Pensava na vergonha dos pais ao saber do erro dela. Nervosa, cavou-se até de se matar, durante a noite, dentro do quarto, nos fundos da casa.
De súbito, Geralda se sentou ereta na cama, como se a raiva do passado tivesse retornado. E anunciou a doutor Alberto que a patroa a demitiu, ameaçando matá-la se abrisse a boca. 
De modo irritado, doutor Alberto levantou-se da cadeira, tratando a ex-patroa de Geralda de irresponsável e insana. Para conter a raiva, pediu a mocinha outro refrigerante. Bebeu rápido. Voltou-se a sentar, para explicar a Geralda que ele nasceu e se criou em Fortaleza. Concordou com ela que lá havia, como em todos lugares, gente sem coração. Daí, Geralda sorriu brando e, em seguida, adiantou-se que seu ex-patrão era de posse como doutor Alberto. Mas foi enganada por ele. Perdoava-lhe onde ele tivesse, mesmo no outro mundo.
Para Geralda, o patrão possuía pano pra manga. Comerciante bem estabelecido no centro de Fortaleza. Ele gostava de ir, uma vez por semana, à noite, para uma reunião numa tal de loja, no centro da capital. Vestia-se de terno preto, camisa branca, gravata borboleta preta. Certa noite, após vê-lo a se despedir da esposa com beijo, ela caiu na tolice de se encontrar com ele. Depois desse dia, de quando em quando, o patrão a procurava, em cochicho na cozinha. E Geralda apontou para a moça, declarando ao doutor ser filha dela com Seu Bruno.
Desconfiado de algo, doutor Alberto instigou Geralda a lhe dizer o nome do ex-patrão. Ela balançou o dedo indicador de modo negativo. E lhe pediu para não insistir. Entretanto, ao ver o médico desconsolado, Geralda se arrependeu. Revelou-lhe de imediato: Seu Bruno Firmeza.
Engoliu seco doutor Alberto o nome. Diante de Geralda, tentou disfarçar-se da surpresa, aconselhando-a ao descanso. Prometeu-lhe retornar no outro dia. Ainda buscou, com palavras de despedida, disfarce para a sua angústia, jurando-lhe retornar. Lá fora não mais chovia. Doutor Alberto resolveu partir. Chamou a mocinha para acompanhá-lo até a porta da rua. Antes de retirar-se, beijou a testa de Geralda. Ela sorriu levemente e, de olhos fechados, derreou a cabeça para o lado, balbuciando entre dentes muito obrigada.
Enquanto doutor Alberto retornava para casa em seu carro confortável, chorou de revolta. Dentro dele, grudava-se a mocinha magra, molhada à porta, chamando-lhe para atender a mãe. Grudava-se aquele ambiente lúgubre, cheirando a naftalina. Grudava-se a confissão daquela mulher pobre e sofrida, mais a filha, vítimas da insensatez dos seus pais. 
JN. Dantas de Sousa

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