Saraiva e o mundo (Dantas de Sousa) - conto

Que surpresa! Saraiva, grande amigo de infância. Ao avistá-lo de longe, José Belo recordou: vinte e três anos se passaram, desde que Saraiva e sua família se mudaram para Fortaleza. 
Esse reencontro de amigos ocorreu na manhã de 15 agosto de 1979. Sem se importar com o perigo, José Belo estacionou seu veículo sobre as linhas de trem, na Rua São Benedito, para lhe perguntar: "Onde você está morando, Saraiva?".  Mas o amigo, antes de lhe responder, buscou aconselhá-lo:
- Só atravesse linha de trem, Zé Belo, depois do sinal da cruz. Nas linhas do trem, têm exus. São governados pelo chefe deles: Seu Tranca-rua.
Surpreendeu-se José Belo com a crença estranha de Saraiva. Ele nunca lhe havia falado sobre assunto de satanismo. E Saraiva insistiu: "Saia logo, de cima da linha. Você não sabe onde pisa? Traz má sorte, atrapalha negócios e a própria vida. Se benza com o sinal-da-cruz e pule fora". 
Não se benzeu José Belo, porém lhe desejou saúde e felicidade. Passou a marcha do carro e prosseguiu pela Rua São Benedito. Pelo retrovisor, avistou Saraiva em pé na moto, benzendo-se antes de atravessar as duas linhas.
Duas semanas após, reencontrou-se José Belo com Saraiva, na Rua Santa Luzia. Aguardava ele o guarda abrir a porta para entrar na agência do INSS. E alertou José Belo de estar de hora marcada para ser atendido. Não poderia, pois, demorar em conversa. Por coincidência, José Belo lhe anunciou de portar a senha do INSS. 
Após apresentarem as senhas nos guichês, sentaram-se um ao lado do outro para aguardarem ser chamados. Pouco a pouco a conversa foi esquentando. Daí José Belo lhe lembrou de quando eles atravessavam as linhas do trem, na Rua São Benedito. E lhe revelou o que o povo dizia no passado: em Juazeiro do Norte, se o sino badalasse na igreja dos franciscanos eram por duas coisas: ou para chamar os fiéis à missa, ou para alertar as pessoas da passagem do trem. 
Mas Saraiva não se agradou da invencionice do amigo. Ele ainda possuía as brincadeiras de mau gosto. Reclamou de José Belo não brincar com coisa séria. Desatou, em seguida, a explicar sobre o mundo dos espíritos. E lhe mostrou como chegou a ser espírita. Dedicou-se a trabalhos de mesa-branca, a dar palestras, a dar passos, além de receber espíritos. Depois, enveredou na umbanda. Ensaiou sobre a beleza do sincretismo, a mistura do rito afro com o catolicismo. Ainda bem que ele deu uma pausa para descansar a fala. O amigo não conseguia entender o espiritualismo de Saraiva e a sua intimidade com espírito de mortos. 
José Belo mudou de assunto. Soubera por um primo, que morava em Fortaleza, ser Saraiva vendedor de livros. Vendeu a seu primo uma coleção de contos de autores de escritores literários, o qual ganhou como brinde quatro reproduções de pinturas de famosos europeus.
Bem pouco terminou de contar a notícia, Saraiva propôs a José Belo o livro que, segundo ele, fora escrito pelo santo da Igreja Católica, São Cipriano. O povo se referia como "o livro da capa preta". Para ele, aquele livro era indicado como o melhor para ser usado por principiante quando precisasse resolver qualquer problema pessoal. 
Ainda antes do atendimento, Saraiva relatou apressado como se desenvolvia o trabalho de mesa-branca, como se desenvolvia um médium, como era uma gira em terreiro, além do valor do tarô e da numerologia. Tudo isso, para ele, lhe servia para a felicidade de qualquer ser humano. De súbito, perguntou-lhe: "Você ainda é católico, Zé Belo?".
Explicou-lhe José Belo não se envolver no catolicismo. Ia à missa, confessava-se e comungava. Tinha suas devoções. Mas não vivia dentro de igreja. Saraiva, então, aprovou-o e desaprovou-o. Ainda bem que mudou para os livros. Continuava a vender livros. Vendia muitas coleções e ganhava boas comissões. Mostrou-lhe ser difícil vender livros, contudo deveria saber vender. Havia coleção que valia dez reais, porém vendia por quinhentos, seiscentos reais. Mas quando queriam duas ou três coleções, ele abaixava para trezentos, duzentos. Menos disso, dava-lhe prejuízo.
Veio à lembrança de José Belo de haver se deparado com Saraiva na Rodoviária de Juazeiro do Norte, no horário da noite para Fortaleza. Saraiva concordou do encontro rápido, e ainda se lembrou de que José Belo lhe dissera que iniciara o primeiro semestre do curso de engenharia civil, em Fortaleza. Foram sentados no ônibus, por coincidência em cadeiras juntas. Interessante que ele lia um livro. Durante a madrugada, ele comentou que precisava lê-lo, ou mesmo passar a vista por cima, para saber vendê-los.
- Já cheguei a ler, afirmou Saraiva, batendo no braço de José Belo, como se o acordasse do cochilo na agência da Previdência. - Leio livro de literatura, como Machado de Assis, José de Alencar, José Lins do Rego... Livro de culinária a best-seller... Mas o que eu prefiro ler é Kardec, Chico Xavier e o meu preferido que é o de São Cipriano, o da capa preta. 
Voltou ao capa preta: ele servia para tudo, principalmente para melhorar as vendas. Empolgou-se: já havia participado de mesa-branca, deu passe no povo, chegou fazer psicografia durante sessão de mesa-branca. Já, no terreiro, trabalhou como cavalo de santo, ou cambono. Ficava na ponta da mesa, a dona do terreiro de lado: ele pensava numa entidade e, de repente, ela chegava no corpo da mulher, já o saudando e se entrosando para resolver trabalhos... Até que enfim, o placar dos guichês de atendimento apresentou seu número. O bom foi que terminaram iguais no atendimento. Receberam o mesmo aviso: ficar aguardando notícia pelo correio. 
Quando José Belo achou haver terminado a conversa, Saraiva a esticou na calçada da agência do INSS até a Praça Padre Cícero. Sentaram-se no mesmo banco da praça. Segundo Saraiva confessou-lhe, não mais trabalharia para político, devido à perda eleitoral do seu candidato. Mas gabou-se: "Consegui, Zé Belo, a minha casa de oração. Trato de todo tipo de gente, principalmente gente pobre. Mas também ricos precisam de trabalhos espirituais”. 
De novo, veio a conversa de livros. Saraiva empolgado anunciou ao amigo haver inaugurado a loja de livros. E me interrogou: "Adivinha, Zé Belo, qual livro que mais vendo lá“. 
Já que José Belo não lhe respondeu, Saraiva bradou, como se quisesse a praça toda ouvir: “O de São Cipriano, o da capa preta”. Adiantou a relação de compradores: comerciante, industrial, empresário, contrabandista, servidor público, dono de jogo de bicho, mulher com problema sentimental, homem desconfiado de traição, e mais gente. Por fim, revelou a José Belo: "Noutro dia, apareceu um sacristão de igreja daqui. Desconfiado, dizendo que o livro era para ele. Mostrei-lhe o livro de São Cipriano. Aí ele pegou, mexeu as páginas, e revelou ser o livro um presente de aniversário para o padre, seu patrão". Por fim, Saraiva soltou a gargalhada estridente que tirou pardais de cima do pé de benjamim.
Depois da longa conversa dos dois na praça, quis o inconsequente destino reencontrar José Belo e Saraiva diante das duas linhas de trem, a da Avenida Padre Cícero, em final de sexta-feira de abril de 1999.
Encontrava-se José Belo dentro do seu automóvel, parado antes do sinal vermelho da linha ferroviária. Ao lado dele, a camioneta cinza-metálica. Dentro dela, alguém de óculos escuros, saudava-o com a mão esquerda pela janela entreaberta, a do motorista. Camioneta bonita, reluzente. A mulher de José Belo o reconheceu e avisou ao marido ser aquele vendedor de livro de macumba. Realmente, era Saraiva na camioneta cinza-metálica. Cabelo alourado, paletó azul-escuro. Em seguida, acelerou a camioneta. 
Foi a última vez que vi Saraiva. Imprudente, num descuido, adiantou-se bem no momento em que o trem, carregado de gasolina e gás, atravessava a avenida. Saraiva não ouviu o estridente apito. Coisa do destino?... Uma realidade: camioneta retorcida. Saraiva ensanguentado, no meio das ferragens sem se mexer, e a sua mulher conduzida gravemente para o hospital. 
Durante a madrugada da sexta para o sábado, José Belo não fechou os olhos no velório do amigo de infância. Preferiu meditar diante de Saraiva no caixão, livre de superstições, de crendices, do capa preta e do mundo. 
JN. Dantas de Sousa

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