Tornou-se questão de honra para
delegado Getúlio, há três meses empossado na delegacia de Barbalha, desvendar o
bárbaro crime e prender o assassino. Cidadãos do município já o criticavam
pelas esquinas, achando-o igual a delegados frouxos, os quais não demoraram no
Cariri. Um locutor da única emissora de rádio da cidade, a cutucá-lo com vara
curta sobre crimes sumidos no esgoto da impunidade, exigia-lhe resolução
urgentíssima da tragédia. Foi por causa disso que delegado Getúlio encheu o
peito de coragem e partiu, acompanhado de dois soldados, na direção do engenho
de Prisco Santana, a fim de prender o tal criminoso.
Mas, durante o trajeto, não havia
sequer uma placa apontada para o engenho do Prisco Santana. E o pior se deu
quando surgiu, diante da camioneta, a bifurcação. Diante daquela forquilha de
estrada, tanto delegado Getúlio como os dois policiais se impacientaram. Sem
saírem de dentro da camioneta, por causa do sol forte, decidiram não retornar
para a cidade de mãos abanando. Resolveram, portanto, aguardar por alguém, a
fim de tirar informação.
Dali a pouco, na estrada à esquerda, um
menino, trepado no jumento, vinha se aproximando deles. Trazia água em quatro latas
de querosene. O animal, no sol de rachar, arrastava-se na erma estrada.
- Ei, moleque, gritou o delegado, ainda
dentro da camioneta. - Qual dessas estradas é que vai dar no engenho do Prisco
Santana?
O meninote, com medo das autoridades,
estirou o dedo para a da direita e enfiou os pés por debaixo do jumento,
deixando para trás rastros de água no barro duro. O delegado e os dois
policiais levantaram poeira. Lá mais adiante, desceram da camioneta, empurrando
a cancela do engenho.
Nem bem se achegaram ao casarão, Prisco
Santana, sentindo cheiro de polícia, já se encontrava em pé, segurando-se na
amurada do alpendre. Nem se mexeu ao ouvir o delegado, de voz alterada no meio
do terreiro, avisar a ele estar à procura de João
Caldeirão.
- Se achegue, delegado Getúlio. Se
abanquem.
- Estou com pressa, Prisco Santana.
Pequena multidão ajuntava-se ao lado do
casarão. Pelos olhares desconfiados, dava-se para perceber que sabiam do
acontecido da tarde do dia anterior e, até mesmo, do destino do perverso.
- O homem se escafedeu, delegado.
- Ninguém viu para onde, Prisco
Santana?
- Aqui, ninguém, delegado.
Delegado Getúlio coçou a cabeça, a
barriga. Não acreditava na afirmação de Prisco Santana. Tinha certeza de que o
tal criminoso se encontrava metido em algum buraco dali. Afinal, o dono do
engenho gozava de fama de acoitar quem lhe batesse à porta. Comentavam que o
velho, com intuito de adquirir mão-de-obra e gente para a segurança, dava apoio
à cabra fora da lei. O velho era poderoso, astuto: mandava e desmandava ao sentir
delegado frouxo. Por isso seus botões o alertavam de que, para arrancar algo
daquela botija, ele, delegado Getúlio, teria de suar. Até baixou a cabeça para
imaginar o que ele diria àquele homem experimentado. Por fim, soltou a voz:
“Vou apanhar o cabra, Prisco Santana, dê no que der”.
Acostumado com tais rompantes, Prisco
Santana em gesto de desprezo voltou para a rede, pondo fim à conversa: “Mas
cuidado, delegado, ao atolar a mão na cumbuca”.
Saíram dali delegado Getúlio e os dois
policiais, bufando de raiva. Bateram com força a cancela. Mais adiante,
alcançaram a camioneta. Partiram de volta à delegacia com o sol começando a
desaparecer por trás da Chapada do Araripe.
***
***
A noite caminhava em lua cheia sobre
Barbalha. No interior da delegacia, delegado Getúlio observava em silêncio,
pela janela, as lâmpadas amareladas nos postes da praça da desativada estação
de trem. Dava-se para ver o último ônibus, à espera de passageiros para
Juazeiro do Norte. Motorista e cobrador, sentados no banco da praça, eram as
únicas pessoas naquele local desolado. A rua, que descia para os lados da saída
da cidade, sem ninguém, a não ser dois cachorros que perambulavam pela praça.
Enquanto o delegado se enleava nos fios
da investigação, sentado com as pernas sobre o birô, penetrou na sala um dos
policiais, para lhe anunciar a chegada dum senhor meio escuro, de chapéu de
palha, o qual lhe desejava falar algo. Segundo o policial, o desconhecido
precisava retirar a espinha atravessada em sua garganta. Mesmo franzindo as
sobrancelhas, delegado Getúlio ordenou recebê-lo.
- Sou Toinho, iniciou ele, sentado
diante do delegado. De cabeça baixa, rodava o seu chapéu de palha, entre os
dedos. E completou a sua apresentação: - Trabalho no engenho de Seu Prisco
Santana.
Delegado Getúlio esticou o pescoço ao
se interessar pelo sujeito, anunciando-lhe ser trabalhador de Prisco Santana.
Era senhor magro, de barba por fazer e aparentava ter uns trinta anos. Nervoso,
pediu desculpas ao delegado por ter vindo sem ser chamado. Enquanto falava lento,
movia os olhos pela sala como se houvesse alguém escondido no recinto,
farejando-lhe os passos. Mas, diante das palavras de confiança do delegado,
acalmou-se.
Na monotonia da noite, Toinho animou
delegado Getúlio. Algo lhe anunciava que uma boa nova se aproximava a fim de
elucidar o crime, além de desmascarar o astuto dono do engenho.
Naquele instante precioso, Toinho ainda
a rodar o chapéu entre os dedos quebrou a castanha e entregou ao delegado
a confissão: João-caldeirão tinha pedido a ele para ficarem trabalhando na
fornalha, na hora em que os trabalhadores do engenho estivessem no almoço e depois
no descanso. Pois foi nesse intervalo que Toinho assistiu à desgraça. Ela se
deu porque a mulher de João-caldeirão botava chifre no marido com Zeca-coité.
- Avie, gritou o delegado, esmurrando o
birô. - Me diga a coisa sem arrodeio.
De tão nervoso, Toinho tremeu-se que
até derrubou o chapéu no chão. Arrependido da ação brusca, delegado Getúlio
levantou-se para apanhá-lo. Ao entregar-lhe o chapéu, buscou palavras amenas e
informou-lhe que a conversa ficaria entre paredes.
Assim, Toinho reanimou-se para terminar
a delação: João-caldeirão sofria da dor de chifre. E o satanás o alimentava com
papa de ciúme. Aí, de repente, apareceu o filho de Zeca-coité onde os dois
trabalhavam. João-caldeirão, empanzinado de papa, não contou até dez: agarrou o
inocente pelas pernas e jogou-o no tacho de mel quente lá do engenho, que não
deu pro coitado dar pelo menos um pio.
- Desgraçado! - delegado Getúlio socou outro
murro no birô. Mas Toinho nem se assustou. Somente ficou espiando a autoridade
ajuntando papéis rapidamente. De repente, o delegado lhe botou no canto da
parede: “Me diga, meu amigo, agora: onde esconderam o criminoso?”.
De olhos na madeira do birô, a rodar o
chapéu entre os dedos, Toinho lhe declarou ter visto o herege indo de jipe para
Exu, no Pernambuco. Seu Prisco havia mandado dois homens de confiança escondê-lo
na fazenda de um primo. Saíram com dia quebrando barra, pela rodagem de areia.
Obedeceu ao pedido da esposa, que considerava João-caldeirão neto deles. Na
verdade, João-caldeirão era filho de doutor Joaquim, filho mais velho de Seu
Prisco e Dona Lulu. E a antiga empregada do casarão, Maria da Conceição, pariu
João-caldeirão.
- Basta! Basta! - bradou delegado
Getúlio, levantando-se apressado. Ficou andando dum lado a outro da sala,
repetindo: “Eu sabia, eu sabia, eu sabia…”. Voltando-se para Toinho, sentado de
cabeça baixa, ainda a rodar o chapéu entre os dedos, determinou-lhe: “Agora,
amigo, por hoje basta. Vá, vá. Depois a gente se vê”.
Delegado Getúlio chamou um dos
policiais. Ordenou-lhe que levasse Toinho até a porta, com prudência,
observando, antes da saída dele, o movimento da rua. E deu ordem para Toinho
ficar de boca calada.
- Num há de quê, delegado Getúlio. Num
há de quê.
Toinho saiu da sala do delegado,
fazendo-lhe mesuras com o corpo, até bater à porta. Ficou delegado Getúlio a
refletir sobre a fatídica declaração do empregado de Prisco Santana. Bem sabia
ele que havia ligação entre o criminoso e o pessoal do engenho. Lembrou-se dos
olhares daquele povinho em volta do alpendre. Das palavras de Prisco Santana,
advertindo-o de que não atolasse a mão na cumbuca. Também dos conselhos do
poderoso dono de engenho, quando da sua chegada a Barbalha. Prisco Santana, em
visita inesperada ao seu quarto do hotel, chamara-lhe a atenção, de voz mansa,
gestos educados: que fechasse os olhos diante de algumas atribulaçõezinhas.
- Desgraçado! - resmungou o delegado.
Irei até o fundo da cumbuca.
Não deu nem tempo de delegado Getúlio terminar
de arrumar o birô para ir jantar num restaurante da Avenida Leão Sampaio: dois
homens entraram porta adentro, sem se importar com o alerta dos dois policiais,
aos berros, mandando-os parar. De olhos esbugalhados, ofegantes, os dois
traziam para o delegado Getúlio a notícia de que um homem fora assassinado
próximo à Matriz de Santo Antônio. Na semiescuridão, ainda chegaram a ver
o opala de Prisco Santana, a toda velocidade, em busca da pista de saída da
cidade. Mas eles dois se prestaram para socorrer o todo-ensanguentado. E o
coitado, antes de ir para outro lado, pediu para avisarem na-toda ao delegado.
- Ainda tá lá no chão.
- Tá lá, seu delegado, durim.
Ao ouvir a agonia dos dois homens,
delegado Getúlio empalideceu. Deixou-se cair na cadeira, ficando derreado ao
birô, com as mãos à cabeça. De olhos fixos na madeira, procurava pôr em ordem
os pensamentos. Lembrou-se da mulher, dos filhos e dos parentes na Zona Norte
do Estado. Lembrou-se do seu ingresso na polícia, em Fortaleza, quase vinte
anos atrás. Da sua nomeação para Barbalha, da sua chegada há três meses. Dos
avisos que ouvira na chegada à cidade, por parte de alguns cidadãos e dos dois
policiais, sobre arrogância e prepotência dos mandões do lugar.
Havia chegado a sua vez, tendo dois
caminhos a escolher: enfrentar Prisco Santana, ou desistir, igual ao Tenório,
colega de corporação. E foi a partir disso que delegado Getúlio, batendo com
força as duas mãos no birô, diante dos dois policiais e dos dois homens à
espera de alguma palavra dele, tomou a decisão.
Antes, ele despediu com educação os
dois homens, prometendo-lhes que iria resolver o caso. Voltou a sentar-se na
cadeira e passou a colocar, na pasta preta, o que lhe pertencia: o retrato dele
e da esposa, ao lado dos dois filhos; alguns papéis, retirados da gaveta de
cima. Por fim, em pé, diante dos dois policiais, apresentou-lhes a
decisão: “Fiquem aqui que irei agir como deve ser”.
Antes de o dia clarear de
todo, com sol se derramando fraquinho pelo asfalto, delegado Getúlio viajou, no
seu próprio carro, a caminho da capital cearense. Infelizmente, uma viagem
sem volta.
JN. Dantas de Sousa