Juvenal Farias Novais e Constância Vieira Novais, funcionários da prefeitura, moraram muitos anos na Rua São Jorge, entre Rua da Conceição e Santa Luzia, na casa estreita, cor amarelo-ovo, de porta e janela de madeira, pintadas de azul-escuro. O número da casa: 423. Vizinhos seus comentavam que casa onde a soma dos números termina em nove só traz desgosto e azar para moradores dela.
Pedro Romão, enquanto morou próximo ao casal, ouvia seu pai chamá-los de rapador de panela. Após ter ido estudar em Recife, além da mudança de sua família para uma cidade do Cariri cearense, ele não soube notícias de Juvenal e Constância. Entretanto, como tudo tem seu dia e nada é oculto para sempre, a mãe de Paulo Romão disse ao filho, em férias de semestre da faculdade, que Juvenal e Constância ganharam uma botija. Botija de ouro. Achou ele algo tão esquisito, e sua mãe não soube lhe explicar.
***
Passaram-se anos. Após se formar em
Medicina, o ginecolista Paulo Romão Parente retornara para Juazeiro do Norte, a
sua cidade natal.
Numa certa noite de fim de maio, ao
chegar à festa de casamento do ex-colega do ginásio Salesiano, encontrou o
advogado Sérgio Cícero Rolim Pinheiro, também ex-colega salesiano, sozinho na
porta do bufê.
Já que poucos haviam chegado ao local
da comemoração, os dois ex-colegas resolveram entrar. Sentaram-se à mesa
afastada do centro da festa. Conversavam entre goles de cerveja e fatos do
passado. Sérgio Pinheiro sempre foi bom de papo. E sentia prazer de ser
farrista e raparigueiro.
De repente, o advogado parou de contar
a piada imoral, para alertar que os noivos chegavam à festa. A multidão já
ocupava o ambiente. Música, barulho de carros, fogos, gritos, saudações, palmas
e o alvoroço tomou de conta do bufê. No meio daquela agitação, Sérgio Pinheiro
bateu no ombro do médico e alertou-o a olhar para o casal que se aproximava da
mesa. Abaixou a voz para avisar a ele: "O de paletó azul-marinho é Júlio
Morais, atacadista. Eu sou advogado dele".
Quando Júlio Morais parou para
cumprimentar grupo de amigos sentados à mesa, Sérgio Pinheiro deu ao amigo as
coordenadas. Em pé, apertando-lhe o braço, ordenou-lhe: "Comporte-se. Ele
vem com sua terceira mulher, Iracema, mais nova que o marido vinte e um anos.
Vaidosa, excêntrica, conversadeira, brincalhona e apreciadora de novidades". E
já em pé o advogado se preparou para agradar aos dois, mas a Iracema com
discrição.
Daí, de conversa em conversa, Sérgio Pinheiro
tocou num assunto que empolgou até a mesa e o que havia em cima dela. Para
mostrar como advogado se deparava com surpresas, ele anunciou ter conhecido o
casal de aposentados que adquiriu uma botija de ouro. Iracema de repente se agoniou
para saber da novidade.
Já que Júlio Morais não conseguia
acalmar Iracema, pôs de lado a vergonha ao pedir ao seu advogado aplacar a
curiosidade de sua mulher. Envaidecido, Sérgio Pinheiro afastou os companheiros
de mesa da barulhenta conversação dos convidados.
***
Constância, esposa do Juvenal, iniciou Sérgio Pinheiro, ela mesma quem lhe repassou, com detalhes, a chegada da surpreendente idosa em sua casa. Na calçada, lado da sombra, ela se deparou com ela ao abrir a porta da rua. Estava deitada com a cabeça sobre o saco, a dormir. Chamou-a e, sem resposta, bateu-lhe no rosto para ver se ela estava viva. Precisou apertar-lhe o nariz para a idosa se despertar.
Ao vê-la calma, Constância se
apresentou à desconhecida. Conseguiu levá-la para dentro de casa, sentando-a na
cadeira de balanço. Às pressas, perguntou-lhe de onde ela era, se ela queria
tomar banho, se ela estava com fome… E resolveu correr para dentro de casa,
depois de fechar de chave a porta da rua.
Voltou depressa, trazendo copo e
garrafa de água. A mulher bebeu dois copos d’água depressa. Constância lhe
ofereceu comida. Mas ela lhe agradeceu, já que havia almoçado numa casa da Rua
do Cruzeiro, na qual se habituara almoçar por lá.
Constância ficou a admirar a
desconhecida: de olhos castanhos, cabelos lisos e pretos. Apesar de idosa,
quase não se via rugas nela, a não ser em cada canto dos olhos. Mesmo com ar de
gente maltratada, a dona da casa via nela origem fidalga. Atreveu-se a
convidá-la a se banhar. Prometeu-lhe dar roupa limpa. Ainda bem que a idosa
aceitou o banho. Mas quando a mulher saiu do banheiro, mostrou-lhe o atraente
vestido que trouxera no saco. Vestido de dama. Deixou-a mais nova. Florido, com
fita dourada na cintura. A emoção de Constância aumentou que até convidou-a
para ela se sentar no sofá da sala.
A partir daí, a idosa deu-se a
conhecer. De fala educada, identificou-se como Maria Aparecida Fortunata
Pereira de Melo. Nascida em Arapiraca, município de Alagoas. Era filha única.
Após a morte dos pais, resolveu andar pelo mundo. Não quis se casar, apesar de
vários pretendentes. Terminara ensino Normal, porém não quisera a profissão de
ensinar nem de continuar estudo. Possuía espírito nômade. Viajou por cidades e
capitais do Brasil e parte da América do Sul. Certo dia, impulsionada pelas
histórias da finada avó paterna, despertou a vontade de vir a Juazeiro do
Norte, cidade tão falada desde criança.
No segundo mês da chegada a Juazeiro do
Norte, decidiu demorar pouco mais na cidade. Dormiu em rancho, comeu na rua. Preferiu
receber o que o povo lhe dava. No entanto, ao entrar nos seus setenta anos, com
saúde a se debilitar, buscou arranjar guarida para desfrutar os últimos dias.
Enquanto Maria Aparecida Fortunata
abria o passado, Constância se enrolou nas teias da desconfiança. A visita
inesperada se mostrava evasiva. Ainda bem que Juvenal abriu a porta de casa e
se deparou com a idosa. Constância se apressou em apresentá-la ao marido. Entusiasmada,
anunciou a Fortunata que na residência só moravam duas pessoas: ela e o marido.
Os dois eram aposentados, e não tiveram filhos. Para surpresa de Juvenal,
Constância ofereceu moradia à Fortunata. E Maria Aparecida Fortunata acabou
concordando em morar com o casal.
Quando os vizinhos souberam da
novidade, aperrearam-se para entrar na casa de Constância. Até que a porta lhes
foi aberta, porém com restrições de visitantes por dia. Dali em diante, a casa se
animou. Fortunata trazia assunto para conversar com qualquer pessoa. Só que o
período de visitas durou cinco meses. Fortunata contraiu pneumonia. Daí
surgiram problemas para o casal.
Ao consultar em casa, o médico resolveu
levar Fortunata ao hospital municipal. Entretanto antes da internação, ela pediu
ao casal que lhe trouxesse um advogado da confiança dos dois. Rápido o advogado
Sérgio Pinheiro, amigo do casal, apresentou-se a Fortunata. Na
verdade, Fortunata sentia aproximar-se a sua despedida do mundo.
Após cinco dias internada, Fortunata
implorou a Juvenal e Constância tirá-la do hospital e a levasse para o seu
quarto. Seu desejo: morrer perto de suas coisas. De tanto insistir, o
hospital lhe deu alta. O casal preparou o quarto, com providencial ajuda da
enfermeira. Não foi em vão, portanto, que o casal gastou suas poucas economias
nos derradeiros instantes de Fortunata.
Na véspera do dia de São José,
Fortunata amanheceu disposta. Após o café da manhã, parecia que ela se
recuperava. Mas era o indício da morte chegando-lhe sutil. Antes do almoço, ela
rogou à Constância para lhe trazer rápido doutor Sérgio Pinheiro. E ao
recebê-lo sentada em sua cama, Fortunata pediu à Constância retirar a chave do
guarda-roupa, a qual se achava debaixo do seu colchão. Fortunata nunca deixou o
casal saber que havia dentro do móvel.
Juvenal e Sérgio Pinheiro abriram o
guarda-roupa e entregaram à Fortunata o saco de algodão branco. Com olhos a
lacrimejarem, a doente agarrou-se ao saco. Retirou de dentro dele o envelope
amarelo. Dentro dele, havia a sacola de plástico preta. A chorar copiosamente,
Fortunata dirigiu-se ao advogado. Havia resolvido doar a Juvenal e Constância o
que ela trazia consigo há anos. Lentamente, ao entregar cada objeto para o
advogado, explicou-lhe o que era: dois cartões de crédito, com saldos; joias
penhoradas em Juazeiro do Norte; uma conta poupança em banco nacional; além de
duas escrituras em nome dela, ou seja, a casa grande dos pais e um grande terreno,
de herança dos pais e com endereço de Arapiraca, em Alagoas.
- Creiam, findou o
advogado, há gente a ganhar botija. E botija de ouro.
Mas para que o advogado acabou a história, que ele advogou, com esse comentário. Assistiram à reação impulsiva de Iracema. Depois de soltar suspiro profundo, ela jogou para fora a angústia: "Como eu queria ter achado uma botija dessa. Mas devia morar numa 423".
De pronto, a leviana recebeu o contra-ataque grotesco de Júlio Morais: "Você merece ser trocada por uma quarta". O comerciante levantou-a de modo grotesco. Sem se despedir dos amigos, os dois se dirigiram para fora do bufê. Júlio Morais bem à frente, e a chorosa Iracema, segurando os sapatos, a cambalear em direção do marido.
JN. Dantas de Sousa