O pacato vilarejo Felizardo havia se
tornado, segundo seus moradores, num lugar confuso e assombrado. Os moradores
mais antigos comentavam ser aquilo aviso de Deus, devido a pecados de muitos
dali. Já os mais novos debochavam dos mais velhos, ao serem eles adeptos de
superstições e crendices. Opiniões se estendiam até quando o silêncio dominava o
vilarejo, e o sono as casas. Durante a noite, as poucas ruas se mostravam sem
gente e só se ouviam raro latido e nenhum miado.
Na imaginação do povo, cravou-se o
inusitado fato. Ninguém conseguia descobrir o porquê do sumiço de gatos,
de cachorros e até de corujas. Surgiu o boato de que a matança de animais servia
para afastar os espíritos maus em Felizardo. E para completar o infortúnio do vilarejo,
numa sexta-feira do dia treze de agosto, ocorreu o angustiante e alarmante caso.
Segundo a opinião uníssona de todos, o chefe dos demônios apareceu entre eles de
modo poderoso e cruel.
Na janela do quarto de dormir, no
primeiro andar da casa, dona Manu de Seu Julião se achava debruçada, sem sono, devido ao
roncar do companheiro Julião Lucena. Mesmo entre tristeza e agonia, ela se
atentou para o barulho de um carro a se aproximar. Em meio à fraca iluminação
dos postes elétricos, avistou ela o veículo preto, com um só farol aceso. Diante
do Mercadinho do Julião, que ficava no andar térreo da casa, o motorista
desligou o motor.
Dona Manu espiou descer do automóvel um
homem vestido de paletó preto e boina preta. Para surpresa dela, reconheceu ser
doutor Morais. Logo pensou o que acontecera para o médico madrugar na cidade. Ele
atendia de segunda à quarta-feira, mas só chegava já com o dia clareado. Dona
Manu procurou fechar a janela e a cortina. Mas ficou a espiar, pela brecha da
cortina, doutor Morais descer do carro diferente do dele. De repente, ouviu ela o som do
chaveiro dele batendo por três vezes à porta do mercadinho. As pancadas, porém,
não conseguiram acordar o seu companheiro.
Pensou de imediato Dona Manu se deveria
atender ao doutor, ou não. Mas incitada pela curiosidade, desceu a escada,
sem ao menos trocar a roupa de dormir. Resolveu ir, naquela hora da madrugada,
porque imaginava que o doutor precisaria comprar algum remédio comum, dos que
se vendiam fora de farmácias.
Qual foi sua admiração após abrir a
porta. Até tampou a boca com a própria mão direita para não acordar Julião
Lucena, ainda roncando lá em cima. Doutor Morais, por sua vez, pediu-lhe com a voz
baixa, porém destemido: “Manu, minha querida, me dê por favor uma garrafa daquele
vinho tinto seco. Aquele que eu costumo saboreá-lo”.
A mulher reagiu com surpresa tanto o
atrevimento do médico para beber vinho àquela hora da madrugada quanto, pela
primeira vez, a leviandade de chamá-la de “Manu, minha querida”. Aconselhou-o a
deixar o pedido para o dia claro. Assim, ela mesma lhe prepararia o tira-gosto.
No entanto, o doutor insistiu com tanta energia que a Manu se deu por
vencida.
Tirou a garrafa do vinho tinto seco da
prateleira. Pôs a garrafa e o copo em cima do galpão. Doutor Morais começou a
beber. Botou-se para conversar baixinho com Manu. Chegou a pedir o seu
tira-gosto favorito. Mesmo chateada, preparou-lhe o tira-gosto de queijo de
coalho com azeitona, azeite de oliva e salpicado de orégano.
De instante a instante, de modo
disfarçado, Dona Manu levantava os olhos lá para cima, temendo o companheiro se
acordar. Doutor Morais, com precaução, providenciou fechar a porta do mercadinho,
para que ninguém os atrapalhasse.
A partir daí, após persuadi-la com
palavras e frases amorosas, Manu concordou em beber um só copo do vinho. Em
seguida, mais outro. Depois de um tempinho, doutor Morais lhe pediu para abrir
a segunda garrafa. Daí, aconteceu o inesperado: Manu caiu nos braços do doutor
Morais, beijando-lhe com efusão. Doutor Morais lhe falou ao ouvido:
"Quanto tempo, ó quanto tempo. Sempre pensava neste bem-aventurado
instante. E o deus do Amor nos presenteou".
- Deus mesmo não - alteou a voz Manu -
E completou: - Foi o demônio, porque eu ardia toda pelo senhor.
Entrelaçaram-se mais em beijos e
abraços. Ela mesma abriu a terceira garrafa e ofertou-a ao amante. Sorriam
baixinho. Gemidos se ocultavam pelos ouvidos. Festejaram sem dar de conta do
raiar do dia. Até que ouviram o burburinho de vozes na rua.
Como três tiros disparados, o casal de
amantes ouviu Julião a gritar por Manu. E ainda ouviram Julião reclamar que o
diabo fizera dormir mais que nos outros dias. Por isso, os dois não deixaram Julião vir ao encontro.
Ainda lá em cima, Julião ouviu o roncar
de carro diante do seu mercadinho. Nem imaginou quem seria. Mas pela janela do
andar de cima, avistou um automóvel preto à toda pressa, em busca da saída de
Felizardo.
Ao descer para o mercadinho, Julião
encontrou-o diferente: sobre o balcão, três garrafas vazias de vinho tinto
seco, dois pratos com resto de comida, dois copos esvaziados. Mas não via a Manu
por perto. Começou a desesperar-se.
Quando abriu as duas bandas da porta do
mercadinho, deu de cara com Maria do Céu, a Celeste, solteirona e ex-noiva sua.
A sorrir para ele, anunciou-lhe a tragédia: “Manu se foi com doutor Morais
estrada afora, Julião. Os dois iam muito alegres, como dois amantes felizes”.
Julião Lucena desabou num choro tão
alto que logo amontoou gente diante do seu mercadinho. Naquele instante, precisou
da Celeste levá-lo, com a ajuda de dois senhores, para o quarto de dormir, no
primeiro andar da residência. Por fim, fê-lo ingerir o comprimido para dormir, o
qual, segundo Julião, o doutor Morais sempre o medicava.
Dali em diante, segundo a opinião uníssona
em Felizardo, o chefe dos demônios realmente tomara de conta do vilarejo e, por
isso, deveriam matar mais animais para afastar os demônios do vilarejo. Mas para
reverter o desespero do povo, Maria Celeste buscou trazer de volta a felicidade
para Felizardo, como também para si mesma. Seu ex-noivo Julião Lucena, que a trocara
pela bruxa malvada Manu, arrependeu-se do pecado de amancebado e se uniram em matrimônio. E toda aquela
desordem no vilarejo fora um aviso de Deus para o povo de Felizardo se arrepender
de superstições, crendices e sincretismo religioso.
JN. Dantas de Sousa