Nunca passou pela minha cabeça viajar -
dizia doutor Raimundo a Seu Piau - num ônibus da linha Juazeiro do Norte-Crato,
no meio dum bando de louco. A confusão se deu, num início de manhã de
segunda-feira de maio, com dois passageiros. Um havia pisado o cesto em que o
outro conduzia ovos de capoeira, para vender na feira do Crato. Embora o
passageiro tinha quebrado quase todos os ovos, porém ele se desculpou nervoso,
devido ao ônibus entupido de gente. Até lhe prometeu pagá-los depois da feira.
Mesmo assim, o pau cantou. Somente se esfriou a bagunça quando um senhor,
arrotando ser sargento da polícia pernambucana, puxou o revólver, botando moral
no ambiente. Não mais se ouviu nem assobio, a não ser o rádio do motorista, transmitindo
o programa matuto pela rádio Educadora do Crato.
Ao término da história dos dois
feirantes, doutor Raimundo imaginou haver agradado a Seu Piau. Mas o dono da
casa nem fez menção de sorrir. Levantou-se inesperado da cadeira de balanço e
convidou doutor Raimundo e mais cinco pessoas ao seu redor para irem beber mais
café do santo na cozinha de sua mulher, dona Rosinha. Naquela noite, havia
terminado a Renovação do Coração de Jesus, evento tradicional católico, solene
e anual, ocorrido em muitos lares de Juazeiro do Norte.
Após a reza e a comida do santo,
a maioria dos convidados regressaram para suas residências. No entanto,
sempre acontecia após a Renovação o bate-papo na calçada de Seu Piau, na
Rua Santa Clara, após a reza. Era o terceiro ano em que doutor Raimundo ia à
casa daquele humilde fabricante de alpercatas de rabicho. No ano anterior, Seu
Piau, em sua calçada, havia declarado ao doutor que desde garoto, todas as
segundas-feiras, frequentou a feira do Crato. Foi puxado pelo seu pai Joaquim
Paixão, seu mestre no ofício das alpercatas. Depois da morte do pai, ele continuou
na mesma caminhada.
- Já vi muito ocorrido de lá pra cá, anunciou
Seu Piau logo que se sentaram os convidados à mesa da cozinha. Segurando a asa
do bule, para se servir, explicou-se: - Eu sei de história de todo tipo, que
até dá pra escrever um livro.
O silêncio pairou ao redor da mesa e
todos se deliciavam de bolo de puba com café. Seu Piau, sentado em frente a doutor
Raimundo, passou a lhe contar, com aquela voz fanhosa, por causa do cigarro, uma
história acontecida no ônibus da linha Juazeiro do Norte-Crato.
Em manhã de sol aparecendo forte, às
cinco horas, o ônibus seguia no primeiro horário da escala do dia. O veículo,
pela Avenida Padre Cícero, forçava andar de tão pesado que os pneus
traseiros pareciam querer secar. Mais adiante, na parada em frente da fábrica
de refrigerante de caju, o motorista precisou ranger bem mais alto os freios.
Logo que as duas bandas da porta
traseira do coletivo se abriram, a mulher gorda, que acabara de chegar às
carreiras com três sacolas penduradas no braço esquerdo e de bolsa a tiracolo,
meteu-se no meio do grupo de dez pessoas. Queria ela, do jeito que desse,
entrar. Gritava insistente: "Sai do mei, sai do mei, bando de égua".
Enquanto a gorda enfezada subia os
batentes da porta, empurrava os passageiros de dentro e dava coices nos que se
esforçavam para entrar. Formou-se o esquenta-cabeça que até o motorista,
aperreando-se lá na direção, quase desconcertou a maquininha de fechar as duas
bandas da porta. Apesar das reclamações dos passageiros, agoniados com
tanta gente antes e depois da catraca, o ônibus se arrastou pelo asfalto da
Avenida Padre Cícero. Por sua vez, aos pontapés e empurrões, não se importando
com rastro de confusão atrás de si, a mulher conseguiu encostar-se à catraca,
com o dedo indicador estirado para o nariz do cobrador: "Comé? A passagem
subiu de novo? Eita que infelicidade. Tudo subindo que nem merda n’água. E o
governo mentindo, que tá tudim congelado. Só se for na venta dele".
O cobrador, rapazinho de olhos
assustados por detrás dos óculos, em silêncio empurrou a gaveta do dinheiro
para dentro e, com dedo indicador, apontou para a tabela pregada atrás dele, no
vidro da janela. A enfezada não gostou de ser tratada daquele jeito. Mais uma
vez arranjou maneira de desafiar os nervos do cobrador: "Avie logo, seu
molenga. Me tire já a minha passagem, senão vou pular por cima dessa
porcaria". E jogou sobre a gaveta a nota novinha de dez reais.
Em silêncio, enquanto o cobrador
passava-lhe o troco, iniciou-se o zunzum de revolta. Um passageiro ousado, de
bermuda e chapéu de palha, procurou defender o funcionário da empresa,
aconselhando a mulher a usar-se de bons modos. Ela, no instante, arrematou-lhe
na cara, com dedo em riste: "Num me chame de dona-maria não. E tem mais:
só porque visto calça pode me humilhar no mei do povo? Venha, atrevidim".
Do meio do corredor, outro passageiro,
de boné preto e camisa do Vasco, fedendo a sovaco, ensaiou apoio à passageira:
"Muito bem, dona. Pobre também é gente". Mas a mulher discordou
dele: "Epa, seu desmiolado. Vire sua boca pro inferno. Pobre é o
diabo dos que vive de venta atolada no fundo dos roedores de voto".
Calou-se a mulher para arrumar as
sacolas entre as pernas. Ninguém mostrou coragem de lhe interpelar algo. Alguns
a olhavam disfarçadamente, esperando-a retornar a falar. Ainda bem que o vento
entrava pelas janelas, amainando fedor humano e das galinhas.
Enquanto o ônibus atravessava o limite
entre Juazeiro do Norte e Crato e começava a pegar força para enfrentar a
subida, sem aguentar o silêncio, a gorda voltou a atirar palavras: “Político é
como rato: empesta por onde passa. Lá perto d’eu tem um vereador que se abanca
na cadeira, fica do contra enquanto não rói o queijo. Basta sentir cheiro de dinheiro
que abre as pernas. A gente tem mesmo pegar a bufunfa e socar o voto no
mal-cheiroso abre-e-fecha deles".
O disparate fez mudar o clima dentro do
coletivo. Gargalhadas e palavrões tomaram de conta do ônibus. Do seu lugar, o
motorista de óculos escuros e pernas da calça levantadas até os joelhos, empurrou
o pé no freio. Parou o ônibus e a bagunça num ponto de ônibus. Desceu
rindo um passageiro com cesta de seriguela à cabeça. E protestou alto: “Eita
muiézinha do diabo”. Ainda bem que ela não revidou o disparate do magrelo.
Enquanto o coletivo forçava para seguir
viagem, a gorda, em silêncio, procurou ajeitar os embrulhos entre as pernas. Em
seguida, agarrada à bolsa e ao cano da bancada, vomitou lamúria: "Outro
dia, achavam que eu era uma besta. Pois um caga-mole teve coragem de se
encostar atrás de mim, numa carroça como essa. Aguentei. Mas quando senti o
bicho dele engrossar no meu traseiro, sapequei a tesoura pra sumir nele. Teve sorte.
A tesoura rasgou pouco a braguilha dele. E eu gritei pra ele: tome, infeliz
ferrabrás. Na outra vez, minha tesoura arranca tua linguiça".
- Qué isso, dona, intrometeu-se o
estudante de farda azul-anil. - Essa loucura vai te levar para trás das
grades.
Outros passageiros resmungaram,
concordando com o rapaz. A mulher não gostou e, de repente, estirou a tesoura
em direção ao estudante: "Venha, frangote. Homem de farda não manda em mim
não. Fui junta com policial. Ele quis me dominar, mas fiz ele brochar. Venha, frangote,
preu pinicar você do meu jeito".
Ninguém quis mais falar nada dentro do
ônibus. Ficaram acuados diante da fera. Não vendo reação, a mulher guardou a
tesoura e cantarolou baixo um Luiz Gonzaga. Embora todas as janelas abertas, o fedor
ainda dominava o ambiente. Só o que dava prazer era o verde das canas, o
verde-azul da Chapada do Araripe e o céu com nuvem.
Não dando trégua ao silêncio, a gorda
destravou a língua com vontade: “Nosso país é de lascar. Na eleição passada, a
gente botou o bonitão das Alagoa na Brasília. Chaleirou até nosso santo frei
Damião. Depois de se aboletar na cadeira, começou a se soltar. E sabe o
que foi que o safadão fez com a minha poupança?".
Bem rápido um gaiato berrou para a
mulher: “Diga não, dona. Aqui dentro vai mulher direita”. Outro passageiro
atiçou o fogo: “Diga, dona, diga como ficou o seu abre-e-fecha”. Um terceiro
escangalhou: "O teu abre-e-fecha mal-cheiroso, dona".
Gargalhadas explodiram no coletivo. E a
mulher, completamente endiabrada, passou a empurrar os passageiros, forçando
passagem para o início do veículo. De toda a maneira, ela queria porque queria
descobrir quem tirou sarro de sua cara. Aos gritos, com veia do pescoço a
estourar, insistia não ser mulher-da-vida nem viada, nem sapatão. Ao conduzir a
tesoura aberta, desafiou: "Desabotoe, seus filhos de quenga".
O cobrador em pé, agarrado à gaveta,
parecia que iam se explodir os seus olhos por detrás dos óculos de míope.
Assistia à balbúrdia e, ao mesmo tempo, gritava para a mulher: “Calma,
dona-maria. Tenha calma, dona-maria”. Ela logo partiu para cima dele:
"Calma o quê, cego-aderaldo. Se meta à besta. Faço com você igual ao que
se faz num assum-preto: furo seus dois fundo-de-garrafa".
Diante da brutalidade da enfezada para
com o cobrador, uns passageiros se revoltaram. Começaram a praguejar contra a
louca. Outros se meteram a favor dela. O bate-boca aumentou mais ainda, e ditos
pornográficos borbulharam no ar do ônibus. Era gente se jogando por cima de
gente, galinhas batendo asas e cocoricando sem parar, cotoveladas e mais
cotoveladas, frutas rolando pelo corredor, a enfezada teimando a empurrar os
passageiros, e com a tesoura aberta desafiava os oponentes. Ainda bem que
o motorista se encostou no ponto em frente da pracinha, um pouco distante do
quartel da polícia militar do Crato.
Tão logo a porta se abriu, a enfezada, vermelha
que nem tomate, arrotando palavrões, apressou-se para descer os batentes do
ônibus. Por azar, estendeu-se na calçada, com as sacolas voando, a tesoura mais
adiante, e as sandálias indo parar na lama do meio-fio. Na ligeireza de gata em
perigo, ela rodopiou pela calçada. Bem ágil se levantou. Antes de recolher seus
pertences, voltou-se de vez para o coletivo e dando socos no ar, esculhambou: “Casca
de banana. Casca de banana, vão pro inferno".
O mesmo estudante, com a cabeça para
fora da janela proferiu: “A primeira já se
foi”. Dois colegas dele completaram o coro do deboche: “Casca de banana.
Casca de banana. Casca de banana”.
Diante daquela humilhação para com a
mulher, os feirantes do ônibus e outros feirantes que se achegaram se uniram.
Até mesmo Seu Piau se aliou aos seus colegas de feira. Decidiram dar uma boa
lição nos três estudantes. Tornou-se necessário dois policiais, correndo lá do
quartel, de cassetetes às mãos, buscaram apaziguar os cascas de banana a
impedirem o motorista cumprir o primeiro horário.
Naquela manhã de segunda-feira, ainda
se precisou de mais quatro policiais a fim do ônibus seguir sua rota, de vidro
da frente todo trincado, devido à pedra de calçamento, tamanho de um coco verde,
jogada pela gorda no descuido dos policiais.
JN. Dantas de Sousa