Apesar do vexame que passou o engenheiro civil e empresário Adoaldo Duarte da Rocha, ele não deixou de conversar com Manuel Francisco Celião, ou Neco Tico, seu pedreiro há anos e encarregado de construir as suas casas de aluguel.
Em suas histórias, Neco Tico unia anjo com demônio, caça com caçador. Um exemplo: quando trocava o piso de uma casa, ele narrou a vitória da cidade de Juazeiro do Norte contra legião de protestantes do estrangeiro. Segundo o pedreiro, sete aviões cheios de bomba vieram acabar com a cidade do padre Cícero Romão Batista. No momento em que os aviões sobrevoavam Juazeiro do Norte, a fim de jogar suas bombas, misteriosamente a cidade se transformou em mar revolto, com ondas que quase batiam no céu. Os aviadores, com medo de caírem naquele mundão de água turbulenta, fugiram apressados, levando consigo as bombas de volta para o estrangeiro. E encerrou a sua história: "Quem contava era meu avô, pai do meu pai. Pois isso eu digo: meu padrinho Ciço é homem santo".
Não deu nem tempo de Adoaldo Duarte rebater-lhe algo. Neco Tico iniciou outro fato com a advertência: "O doutor devia saber que meu padrinho fazia coisa difícil de se creiar". E relatou que o pai dele contava o que tinha ouvido duma pessoa mais velha: num dia em que o rio Salgadinho estava a se esborrotar pelas beiras, padre Cícero tirou o seu lenço do bolso da batina e, diante do povo na beira do rio, estendeu-o em cima da água. Depois, subiu no lenço e atravessou o rio, de lado a outro, sem nem molhar seus sapatos.
De outra feita, quando Neco Tico cobria o telhado de uma casa, declarou ao engenheiro que Antônio Mota não se suicidara, porém havia fugido de Juazeiro do Norte, para se escapar do bando de cobrador atrás dele.
Dessa vez Adoaldo Duarte da Rocha discordou de Neco Tico. Explicou-lhe que havia se encontrado com a irmã de
Antônio Mota dentro do Banco do Brasil. A moça até chorou, ao lhe confirmar o
suicídio do irmão. Segundo ela, o fato trágico aconteceu em Teresina, no
apartamento do primo. Encontraram Antônio Mota deitado no chão, ao lado
da cama. No quarto, havia a garrafa de uísque quase vazia, e a caixa de remédio
de tarja preta, contendo um comprimido. A família, com urgência,
enterrou-o por lá mesmo, no jazigo de parentes da mãe. No entanto, o
querido irmão não deixou sequer um bilhete.
Após o término da fala do engenheiro seu patrão, Neco Tico, parou de trabalhar. Sério, jurou em nome de Deus que a mãe de Antônio Mota inventara o suicídio. Antônio Mota devia os olhos da cara. E Neco Tico quis provar ser verdade com este fato: enquanto consertava o telhado da casa da mãe de Antônio Mota, na Rua São Paulo, ele ouvira a invenção da mãe para os filhos.
Daí em diante, doutor Adoaldo Duarte foi elevado ao cume da dúvida. Ao
mesmo tempo, algo em seu interior o impelia para descobrir o enigma. Em
casa como no escritório se angustiava a refletir sobre Antônio Mota. Lembrava-se de haver convivido com Antônio Mota, até que se mudou para Recife, a fim de
cursar engenharia civil. Soube depois de ele haver negociado com miudezas. Depois montou escritório de representação de calçados. E, mais tarde, inaugurou a
fábrica de sandálias japonesas em sociedade com um gaúcho, que viera residir em Juazeiro
do Norte.
Apesar de haver perdido o contato com a família de Antônio Mota, decidiu doutor Adoaldo ir à casa da mãe do finado amigo. Conseguiu, enfim, o endereço. Ela morava no bairro Novo Juazeiro. Ainda descobriu que o marido dela morrera do coração, dois meses antes do suicídio do filho. Por fim, Antônio Mota havia caído em mão de agiota.
Finalmente doutor Adoaldo, em tarde de pouco sol, estacionou o carro em frente da casa da família do finado Antônio Mota. Lá dentro, encontrou a mãe dele de olhos fundos e fala chorosa. Na sala da frente, sentada ao lado dos três filhos e da filha, mostrou a doutor Adoaldo a certidão de óbito de Antônio Mota. Narrou-lhe a mesma história que ele escutara da irmã. Ainda, declarou-lhe que o filho, antes do suicídio, andava deprimido, a misturar uísque com depressivo faixa-preta. Por fim, aflorou-lhe a lamentação: "O senhor imagine que é dever a banco e agiotas".
Saiu da casa da família de Antônio Mota aliviado por ter ouvido a verdade. Enquanto se dirigia para casa, lembrou-se do amigo finado, da sua infância pobre, de ter sido trabalhador esforçado... Mas cometera o suicídio em momento de fraqueza, desespero...
Ao se encontrar com Neco Tico, doutor Adoaldo chamou-lhe a atenção, ao relatar ter ido â casa da família de Antônio Mota. A sua mãe lhe confirmou o suicídio. E ainda o engenheiro advertiu a Neco Tico: para ele tomar cuidado com as suas mirabolantes fantasias, histórias mal contadas.
Pois não é que, na semana seguinte, Neco Tico se dirigiu â casa do patrão Adoaldo. Apresentou-lhe o papel escrito à caneta. Na folha continha nomes de firma, banco e agiota. Ao lado de cada nome, a quantia do débito. No verso da folha, a comovente despedida de Antônio Mota. Segundo Neco Tico, o documento ele encontrara na gaveta da cômoda, no quarto do falecido. Neco Tico, durante a ida apressada da família a Teresina, havia ficado a vigiar a casa da mãe de Antônio Mota.
Diante da segurança da voz e do olhar de Neco Tico, doutor Adoaldo Duarte retornou â casa da mãe de Antônio Mota. Para sua angústia, ela jurou ser o documento uma chantagem, picaretagem, a fim de enlamear a vida do filho infeliz. Para desespero de Adoaldo, dois filhos dela coagiram-no para que revelasse o autor da mentirosa invenção. Ainda ameaçaram de matar Adoaldo se ele não o revelasse.
Adoaldo Duarte da Rocha lhes revelou o nome do autor. Forçaram-lhe a trazer Neco Tico, a fim de calar-lhe a boca. Que imprudência Adoaldo havia cometido e se metido.
Já Neco Tico recebeu da família do finado Antônio Mota uma boa quantia para ele calar a boca. Mas para Neco Tico boca calada não cala o coração. Nunca deixou de afirmar ao patrão e aos amigos e conhecidos: "Não ando mais na casa do finado de mentira. Foi bom a graninha recebida. Mas a verdade não tem idade".
JN. Dantas de Sousa