Na casa grande de Seu Inácio Mapurunga
Bacurau, havia cerca de cinquenta pessoas, e chegando mais. A maioria,
familiares dos donos da casa. Festejava-se naquela noite de 23 de junho a véspera de São João (celebração que ocorre
antes do dia de nascimento de São João Batista), a
renovação do Coração de Jesus daquele lar e os quarenta e nove anos de
casamento de Seu Bacurau e Dona Didi.
Comida era de ruma: milho assado e
cozido, pamonha, canjica, bolo de milho, bolo de batata-doce, bolo de puba,
mungunzá doce e salgado, paçoca, pipoca, tapioca, baião de dois (mistura de arroz
com feijão), macarrão, carne de gado, de galinha, de porco. Via-se nas mãos dos
convidados, cada serra de comida nos pratos. Muitos até repetiam. Alguns comiam
que deixavam. Também a bebida era a granel: refrigerante, cerveja, cachaça,
aluá de abacaxi, chá de capim-santo e de erva-doce, além do café. Meninos e
meninas se misturavam no meio dos adultos e soltavam bomba, chuvinha,
rabo-de-saia, busca-pé.
No terreiro acimentado diante da casa,
todo enfeitado de bandeirolas coloridas, dez pares dançavam. O sanfoneiro, o
zabumbeiro, o pandeirista e o do triângulo eram de primeira, numa harmonia só.
Perto do cacimbão, a fogueira alumiava mais o pessoal que as lâmpadas dos dois
postes. E o fogo dela parecia querer esconder a lua crescente e as estrelas.
De repente, numa mesa debaixo da
mangueira, quatro rapazes que bebiam o litro de aguardente Kariri, tirando
gosto com torresmo de porco, começaram a discutir entre si. Pelo que se deu
para perceber, o filho de Seu Bacurau, universitário no Cariri, havia levantado
esta questão: as pessoas deveriam viver para comer, ou se elas deveriam comer
para viver.
Em meio às opiniões, o rapaz de óculos,
universitário de Filosofia no Recife, se pôs em pé, sem soltar o copo de
cachaça, afirmando bem alto que não se podia transformar nem o alimento,
nem a bebida em um fim, porém em um meio. Com o indicador estirado para o
tempo, subiu mais a voz para proferir a frase que, segundo ele, escrevera um
pensador cristão: “Não se pode
atribuir o comer e o beber um valor meramente instintivo de conservação da vida”.
Ao ouvir a alteração do
rapaz de óculos e a agitação verborrágica dos outros três ao redor da mesa, Seu
Bacurau se aproximou de mansinho, ar de humildade, chamando-os de meus
doutores. Conseguiu acalmá-los, sentando-se junto deles. Com sorriso simples,
pediu-lhes atenção para contar a história de um seu morador, chamado Noé. Mas,
antes de começar a história, prendeu a atenção dos rapazes ao se deliciar com o
dedinho de cachaça e o torresmo. Ainda limpando com lentidão os dedos no lenço,
iniciou a narração, de voz abaixada, afirmando-lhes que Noé era caboclo forte,
corajoso, destemido, com reca de menino nos cós e esposa disposta. Não havia
hora ruim para o morador nem trabalho fardento.
- Noé era cabra de cabelo na venta, de
braços bem torneado. Honesto até debaixo d’água, porém com juízo de menino.
Soletrava besteirinha e fazia de cabeça tiquinho de conta. Os filhos
acompanharam ele na valentia, na disposição, mas nenhum dele se pendeu para as
letras nem para os números. Só que Noé tinha um defeito.
O de óculos se afoitou a
querer saber qual era o defeito de Noé. Mas só depois de beber outro dedinho de
cachaça, de mastigar e engolir outro torresmo, Seu Bacurau afirmou que o
morador possuía o pecado da gula. Comia feito jumento. Havia presenciado Noé, ainda
moleque, de doze anos, comer dúzia de banana-pão e, em seguida, beber de vez,
no copo feito de lata de óleo de cozinha, um litro d’água, até só deixar o
pingadozinho por cima dos peitos.
- Manga, meus doutores, nem contar o
estrago que Noé fazia. - Seu Bacurau soltou a gargalhada, para completar: - Noé
deixava um montão de casca no terreiro para os porcos se alegrarem.
Como os rapazes não abriram a boca, Seu
Bacurau lhes relatou outro exagero de Noé: no dia da feira do Crato,
segunda-feira de manhã, ele chegou a fechar aposta com um pernambucano, de tipo
fogoso por dinheiro. Cada um deveria comer uma lata de goiabada, daquela
redonda, fabricada em Arcoverde, no Pernambuco. Segundo Seu Bacurau, naquela
ocasião, até chegou a duvidar de que o morador não ganharia a aposta. Mas
terminou casando dinheiro a favor de Noé.
A aposta deu bom para Seu Bacurau, e a
derrota passou foi longe. O desconhecido abandonou metade da lata de doce. Na
vez de Noé, ele pareceu relâmpago, nem fez careta. Ainda lambendo os dedos, Noé
chegou a apostar outra lata de doce com um atrevido motorista de caminhão de
Petrolina. Só que o motorista desistiu.
De tão admirados, os rapazes pareciam
estátuas. Seu Bacurau, no domínio da conversa, depois de beber outra dose de
aguardente, seguida de outro torresmo, lembrou-se do dia, ou melhor, da boca da
noite, no jantar de batizado do segundo menino de Noé, no qual ele fora o
padrinho. Lá, deparou-se com o morador comendo na bacia de ágata, daquela de
lavar rosto, cheia de arroz, feijão de corda, farinha d’água e o pedação de
carne de bode, de quase dois palmos de mão de homem. Comia cada bocado e, em
seguida, levava à boca uma colher de caldo de feijão com pimenta malagueta
amassada, tirada do prato ao lado. Por fim, engoliu duas bananas-pão. Sem se
esquecer do copo de alumínio, cheio de água, só pingando besteirinha pelo meio
dos peitos.
- Eita, Seu Bacurau, levantou-se rápido
um dos rapazes. Esse é igualzinho a jumento. Mas isso parece, me desculpe,
história de Trancoso.
Depressa o filho de Seu Bacurau
levantou-se em defesa do pai: “Pera aí, Ramos, pai não mente não. Noé era assim
mesmo, como pai está dizendo”.
Para esfriar os ânimos, Seu Bacurau
reclamou dos rapazes para que não fizessem mais agitação. Revelou-lhes não
estar inventando nada e era um velho que não perdia tempo com mentira. Foi
adiante: referiu-se a outro exagero de Noé. Num engenho de Barbalha, Noé bebeu
sete litros de caldo de cana. Em outra ocasião, Noé rasgou nos dentes quatro
rapaduras das pretas, acompanhadas de um quilo de amendoim, que ia descascando
na hora. E ainda noutra feita, Noé empurrou para o estômago doze espigas de
milho cozidas, no abrir e fechar de olhos. Sem se esquecer do dia em que
assistiu a Noé, já dentro dos cinquenta anos, traçar nos dentes a banda de bode
afogueado, com punhados de farinha d’água.
- Agora, preu terminar minha
conversa e para deixar os doutores beberem sem alarido, meus
olhos viram compadre Noé, no jantar do casamento do filho mais velho, e olhe
que ele já andava na casa dos sessenta e tarará de ano. Ele devorou duas montanhas
de comida, naquela sua bacia de ágata, depois de já ter bebido a cervejada e
comido um quilo de macaxeira.
- Pelo amor de Deus, protestou em voz
baixa o de óculos de grau. - Como o senhor acabou de contar, Noé era mesmo um
animal, Seu Bacurau.
- Bote animal nisso, doutor. É por isso
que sempre aconselho os jovens: cuidado para não se tornar escravos da gula.
Pode ser de comida, de bebida.... Quem entra no vício vão bater no inferno.
Levantando-se da mesa, Seu
Bacurau, antes de se despedir dos rapazes, ainda bebeu o dedinho de cachaça,
acompanhado do torresmo. E mostrou firmeza de fazer inveja aos seus doutores.
Dançou, no acimentado com Dona DidI, o xote Ovo de Codorna, de Luís
Gonzaga, como se fossem dois jovens bailarinos no auge da mocidade.
JN.Dantas de Sousa