"Se você anda à procura de história fantástica, nosso Juazeiro do Norte tem de rolo. É cada de deixar um de queixo caído". Foi assim que Manuel Sales, representante comercial de Juazeiro do Norte, falou sorrindo para o inspetor José da Fonseca Lins, depois de assistirem à cena inusitada, na rodoviária.
De seis em seis meses, vinha Zé Lins ao Cariri, já que viajava como inspetor de uma firma comercial atacadista de Recife. Sempre alegre, para ele não havia praça ruim, isto é, cidade ruim de venda. Vestia-se de bom tom, era exigente no comer e no beber. Possuía memória fabulosa, catava história para repassá-la depois. Segundo Zé Lins, dava-lhes pintura nova.
Devido ao seu hábito de contar fatos, Zé Lins, de volta ao Cariri, cobrou a Manuel Sales uma história de Juazeiro do Norte, e de "deixar um de queixo caído". Naquele começo de noite de sexta-feira, os dois jantavam num restaurante do bairro Lagoa Seca. Manuel Sales se lembrou daquela sua expressão “de queixo caído”, dita por ele na rodoviária, antes de Zé Lins partir para Recife. Chegou a rir da boa memória do amigo viajante. E lhe prometeu levá-lo a uma chácara, para lhe tornar mais surpreendente o fato.
No sábado, às três e pouco da tarde, achavam-se os dois na chácara de Pedro Bento de Morais, comerciante de miudezas em Juazeiro do Norte. Dali a pouco, chegaram dois homens, e logo foram apresentados pelo dono da chácara a Zé Lins: Batista e Belarmino. E Pedro Bento explicou a Zé Lins: Batista, seu morador. Belarmino, funcionário do dono da chácara vizinha. Eis a dupla personagem principal da história da pagadeira de promessa. Pois quando alguém lhes pagava uma tremenda gelada com tira-gosto afiado, aí eles remexiam o fato com desenvoltura.
Ao sentir-se tomado pela curiosidade sobre a pagadeira de promessa, Zé Lins decidiu abrir o bolso. Dirigiram-se, então, os cinco - o dono da chácara, Manuel Sales, Zé Lins, Batista e Belarmino para a bodega de Seu João, que ficava a uma quadra da capela de São José do Limoeiro. Sentaram-se ao redor de duas mesas unidas. Seu João, todo satisfeito, em meio ao grupo de fregueses, espalhou sobre as mesas o litro da cachaça amarela, duas garrafas de cerveja, dois pratos com seis linguiças cada e o pirex de farofa amarela. Batista foi quem se antecipou: “Na noite do acontecido, Seu Zé Lins, nem Belarmino, nem eu, tivemos bebido um golim de álcool”.
Naquela noite de quinta-feira, Batista e Belarmino estavam diante do muro da chácara de Pedro Bento, aguardando o começo da Hora da Graça (chamam de Hora da Graça ao ato litúrgico em algumas igrejas de Juazeiro do Norte). Dali a instante, na capela de São José, quinta-feira à noite, iniciaram a missa.
Encostados ao muro da chácara, Batista e Belarmino conversavam. Belarmino se referia a uma mulher que vivia apanhando do marido, sujeito alcoólatra, preguiçoso e ciumento. Mas, de repente, Batista teve de interromper o amigo para lhe mostrar a presepada a se passar diante da igreja. Explicou a Zé Lins: "Era uma mulher, de carne e osso, mas da finura de um dedo. Parecia mais uma seriema”.
- Peraí, Batista, intrometeu-se Belarmino, ela mais se parecia um filete de cana.
Riram-se os dois. Em seguida, beberem dois dedos de cachaça cada um. Batista limpou, com a mão direita, resto de farofa na boca. Descreveu a moça: ela se vestia de vestido branco, comprido até os pés. Ainda, o cabelo preto ia até no quadril. Ajoelhada, subia com lentidão os degraus diante do templo amarelo, com a lua arredondada sobre a torre.
Do instante em que Batista mostrou a mulher a Belarmino, ela só precisava vencer um degrau para chegar à porta principal. Era o mais largo degrau de cimento sem ser alisado. A desconhecida não se envergonhava da promessa. Enquanto se arrastava sobre os joelhos, rezava o terço. Ao chegar à porta central da igreja, o padre lia o Evangelho. Pelos alto-falantes, Batista e Belarmino escutavam de lá do muro a história de Jesus, curando um homem paralítico...
Em meio à leitura do padre, Batista falou para Belarmino: “Eu já vi esse filme, amigo". E ele pegou Belarmino pelo braço e saiu puxando o amigo. Pararam na porta central da igreja. Antes de Belarmino se encostar na porta central da capela, Batista não se descuidou da mulher. Ainda ela andava de joelho. Depressa, Batista falou baixo para o amigo: "Essa daí não é de-vera pagadeira de promessa".
. Me lembrei, seu Zé Lins - interrompeu a história Batista. - Uma conterrânea minha, de lá de Milagres, aquela era de-vera pagadeira de promessa.
Batista entrou na promessa da sua conhecida: ela carregou a pé, de chinela japonesa, até Juazeiro do Norte, a estátua do padre Cícero, do tamanho dum filtro d’água. Ao chegar ao destino da promessa, andou ajoelhada, da estátua do padre Cícero, a que fica do lado de fora da igreja do Socorro, e foi botar a estátua em cima do túmulo do padre Cícero, que se encontra até hoje dentro da igreja. Depois dela rezar de joelho num silêncio todo, ela mesma sozinha, a pé, levou a estátua e deixou-a na Casa dos Milagres, que fica de lado da igreja do Socorro.
Ao terminar a sua história, alteou Batista a voz "Mas aquela seriema, Seu Zé Lins, na hora em que eu botei os olhos em cima dela, não tive fé nela não. A mulher tinha cara duma farseira".
Batista e Belarmino, em silêncio, beberem seus copos de cachaça, acompanhados de linguiça inteira, bem melada com farofa, E Batista, depois de agradecer ao Zé Lins a sua bondade, se enfiou por mais uma história, que correra na cidade do Juazeiro, de boca em boca. Dessa vez foi diferente: uma mulher acaboclada, já aparentando mais para anciã, subiu o serrote do Horto de joelhos. De chapéu de palha, agarrada à muleta e, mesmo com pedaço de pneu em cada joelho, sofreu nas pedras. O menino de boné, com lata redonda de doce, pedia esmola ao povo. A mulher ia atolando as esmolas na sacolinha de pano. E terminou com a explicação: "Seu Zé Lins, muita gente que vem de fora, e os daqui mesmo, não conhece nosso Juazeirim não. Aqui está empestado de gente farseira".
Como ninguém interrompeu os dois, eles beberam de vez dois copos de cerveja e cada engoliu metade de linguiça sem farinha. Voltou Batista à história da pagadeira: ele puxou o braço de Belarmino e seguiram até a janela do lado direito da capela. Pelo lado de fora, alertou ao amigo enquanto apontava para a pagadeira de promessa: “Se essa seriema, Belarmino, não for uma farseira, que eu morra aqui no chão, durinho”.
Ficaram os dois esperando o término da Elevação. Segundo Batista, aquele instante se mostrava solene e dum silêncio só. Ouvia-se barulho dos ventiladores e o toque do violão, escondido no meio dos fiéis. Belarmino, de joelhos, olhava para o altar. Mas Batista não perdia de vista a mulher, ajoelhada, por detrás da cantora e do violonista.
Calou-se Batista por instante. Ajeitou, para ele e o amigo, uma dose de três dedos, com pedaço de linguiça para cada, melada com farofa. Só depois de engolir o tira-gosto, Batista voltou a falar da pagadeira de promessa na capela de São José do Limoeiro. Até a missa terminar, Batista não tirava os olhos da mulher perto dos dois cantores.
Havia chegado o momento da bênção do Santíssimo. Naquele momento tão aguardado pelos fiéis, tanto Belarmino quanto Batista se puseram de joelhos, braços espalmados para o altar. O padre abençoava os fiéis, segurando firme o ostensório. Por três vezes, o sacerdote traçou o sinal-da-cruz com o ostensório. Os olhos dos dois amigos, como os dos fiéis, permaneceram fixados na bênção, por ser momento de pedir a graça, ou de agradecer à alcançada.
Mas quando os dois voltaram à realidade, sentiram perder de vista a pagadeira de promessa. Batista, de imediato, se desesperou. Belarmino, tentando acalmá-lo, se propôs a procurá-la. Correram, então, pelo pátio da igreja, e nada da mulher. Resolveram, pois, os dois se valerem do padre, entre duas fileiras de bancada no meio da igreja, a conversar com quatro senhoras. Só que nem o padre, nem as mulheres, nem punhado de fiéis viram a tal mulher a pagar promessa, a andar de joelhos, dentro da igreja.
Batista se impacientou: levantou para o padre sua voz, jurando por Deus-do-céu que tanto ele como Belarmino viram a pagadeira de promessa. Mas o padre mandou Batista baixar a voz, e se dirigiu para a sacristia.
Os dois concordaram ir, após o padre sair da sacristia, se queixar a Zé-sacristão, na sacristia. Mas o sacristão, guardando os paramentos, mostrou-se irredutível na negativa. E ainda os ironizou: “Deixem de rebuliço no lugar sagrado. Estão com a branquinha rebolando na cabeça”.
Batista não gostou do deboche. Jurou a Zé-sacristão que ele e Belarmino não haviam bebido nem uma gota de cachaça, nem de outra bebida alcoólica. Mas tinham visto, sim: a mulher chegou de vestido comprido branco, parecida com uma seriema… O sacristão, porém, debochou deles de novo: "Que visagem fora de série: uma seriema rezando de joelhos... deviam levar ela pro Fantástico".
Para terminar logo a história, Batista e Belarmino, depois de chegar na metade da segunda garrafa de cachaça, cada qual finalizou seu testemunho, aos que estavam presentes na bodega de Seu João. Parecia os dois falando ao mesmo tempo: depois da visagem, uma coisa dentro deles dois lhes diziam que a mulher, a pagadeira de promessa, tinha parte com o demônio. Alma do purgatório, chamada de pagadeira de promessa. Andam a vagar pelo mundo, entram de joelho de igreja em igreja, a fim de afastar católicos do caminho de Deus e levá-los para outras leis que não eram de Deus. Esse tipo de alma bota carrada de corpo e alma no purgatório, onde a fornalha satânica vive a operar o elixir da imortalidade, perfumado de enxofre.
JN. Dantas de Sousa