A conversa do comerciante de material
de construção Adalberto Rodrigues com o seu pedreiro Chico dos Anjos foi
interrompida, em manhã de domingo, pelo espantoso grasnado de gavião. Tal duas
crianças curiosas, os dois ficaram a procurá-lo. Até que avistaram o danado
sentado num dos cajueiros do sítio Sossego, de Adalberto Rodrigues.
Após o medo passar, o patrão e seu
funcionário jogaram para a paisagem a risadaria. Mas a burra Mimosa relinchou
de imediato, parecendo sorriso escrachado, como se gozasse dos dois. E Chico
dos Anjos sem mais se lembrar do que falava antes da passagem do gavião, ao
retornar para a cadeira de balanço, expressou: "Aquele gavião, Seu
Adalberto, me fez lembrar de quando eu morava no Lama".
O comerciante não lhe perguntou sobre o
tal Lama. Deixou Chico passear com os olhos a paisagem do Sossego, com prenúncio
de chuva de dezembro. Dali a pouco, Chico, derreado na cadeira, declarou ao
patrão: “O Lama, Seu Adalberto, é um arruado onde eu e meus irmãos nascemos”.
Segundo Chico, o povo do arredor
debochava de quem era de lá, ao zombarem: “Nasceu no Lama, nasceu na lama”. Mas
desde que sua família viera morar em Juazeiro do Norte, ele havia se esquecido
da piada e havia deixado de andar lá. Retornou Chico a se lembrar do gavião:
"O desbocado me clareou o Lama, de um fato corrido lá e muito falado”.
E começou a narrá-lo: certo dia pela manhã,
com vento frio a correr, ele descia a estrada do Lama, sozinho, para ir visitar
seu tio que chegara de São Paulo a passeio. Andava a pensar como ele daria a
negativa ao tio, que o convidara a ir morar na cidade do interior paulista, a
fim de trabalhar no canavial.
Num rápido instante, a sua reflexão
mudou de rumo. Ao entrar na curva, sentiu medo da assombração. A duzentas
braças, o adolescente Chico avistou os tições de fogo. Ao se aproximar da
esquisitice, o seu espírito lhe dizia ser coisa do outro mundo. Ficou em dúvida,
mas se lembrou dos mais velhos dizerem: coisas de outro mundo só apareciam de
noite, por causa das trevas.
- A coisa, Seu Adalberto, se virou num
bocado de braça. Pareciam diabos voando na minha direção. Fiquei arrepiado como
porco-espinho.
Paciente, à espera de Adalberto terminar
de rir, Chico Silva se deixou vagar com a natureza do sítio. Quando ele notou o
patrão sério, relatou-lhe ter posto o medo para as costas e sustentou a mão da
coragem, a fim de enfrentar a guerra contra as almas do outro mundo. Não
despregou os olhos naquela munganga.
De repente, o silêncio do mundo se
partiu em dois. Um gavião rasgou o tempo, num grasnar aperreado de fome. A ave
agourenta rodava em círculo no céu, arrodeando o luzeiro de tições de fogo a
dançarem no céu sem nuvem. Chico se viu dentro da redoma de mundo. Avistou o
gavião sobre sua cabeça, a alastrar gritos agourentos, em meio a tições de fogo
que iam e vinham com o vento. Cada passo que ele dava o mistério aumentava.
Quando a visão ficou para trás, Chico apressou
os passos, sem olhar para trás. Ao entrar no povoado, soltou a língua para o
povo sobre a assombração. Logo a curiosidade de todos se levantou, não deixando
a multidão se recolher em casa.
Levaram-no de volta até o lugar da
assombração, pois queriam testemunhar o tição de fogo a aumentar de tamanho,
duma forma que ninguém jamais havia visto no Lama. Realmente, os que
acompanharam Chico da Silva até o local voltaram de lá atiçados e decididos a
descobrirem o mistério.
- Foi o padre do Lama o desencantador
do mistério, Seu Adalberto - e jogou fina gargalhada estridente, parecida com o
gavião no Sossego.
Para o pedreiro, padre Aniceto sabia de
tudo. Lia muito e transbordava-se de fé. Pouco se abalou quando o povo lhe contou
a história do Francisco e dos que a testemunharam. Entretanto, para se
certificar do estranho fato, o padre chamou o rapaz Francisco para checar a
conversa dele com a dos outros. Ainda, padre Aniceto desconfiado do mistério do
tição de fogo, pediu ao povo do Lama rezarem, para Deus revelar a verdade.
Após cinco dias de procura, a verdade
se deu. Seu Sebastião Arruda, velho da confiança do pároco, correu terra para focinhar
os tições de fogo. O ancião sozinho e em segredo percorreu estrada, noite e dia,
amparado pela reza do padre. Lá pelas tantas, descobriu o mistério.
Diante do padre Aniceto, no salão atrás
da capela e lotado de curiosos, Seu Sebastião Arruda explicou a todos: os
tições de fogo surgiram pelas folhas de pau-dóia. As folhas ficavam murchadas
pelo chão e, com o tempo, elas levantavam tições de fogo. Como as que saem das
caveiras de cemitério, incendeiam-se no ar e, pela tradição, chamam-na de
fogo-fátuo.
JN. Dantas de Sousa